Folha de S Paulo
Estamos vendo a taxa de câmbio declinar perigosamente todos os dias, impulsionada pela altíssima taxa de juros real. Conforme procurei mostrar em artigo anterior, essa taxa é o preço macroeconômico mais estratégico da economia brasileira e deve permanecer sempre relativamente depreciada para que haja desenvolvimento. Entretanto ela só se deprecia no Brasil nos momentos de crise cambial. Fora disso, valoriza-se de forma implacável, seja porque os juros altos atraem os capitais especulativos, seja porque o caráter absurdamente oneroso desses juros impede que o governo faça o que fazem os países asiáticos quando são invadidos por fluxos de capitais que ameaçam apreciar seu câmbio: emitem dívida pública interna e, com os recursos, compram e transformam em reservas as divisas que estão entrando e pressionando o câmbio para baixo.
Existe, porém, uma razão estrutural para a apreciação artificial do câmbio no Brasil: a "maldição dos recursos naturais", também conhecida na teoria econômica com o nome de "Dutch disease". O Brasil não é exportador de petróleo, e, por isso, essa maldição ou essa doença não tem aqui a gravidade com que se apresenta em países como a Venezuela ou a Arábia Saudita. Mas, como possui recursos naturais abundantes, que possibilitam a produção agrícola e agroindústria a custos muito baixos, o problema da maldição dos recursos naturais não pode ser subestimado.
A "doença holandesa" que atinge um país resulta da apreciação artificial do câmbio em conseqüência do baixo custo de produtos exportados que utilizam recursos naturais baratos. A diferença entre o preço em dólares desse produto no mercado internacional (que é determinado pelos produtores menos eficientes) e o seu custo é uma "renda econômica", ou seja, um ganho que não tem relação com a produtividade. Se, além disso, esses produtos forem produzidos de forma moderna e eficiente, como é o caso do agronegócio no Brasil, a probabilidade de que a taxa de câmbio seja artificialmente rebaixada, ou seja, valorizada em relação à "taxa de câmbio necessária", é muito grande.
Usarei de um modelo simples para explicar a maldição. Vamos imaginar que a taxa de câmbio necessária de um país em relação a uma cesta de moedas refletindo suas exportações seja um índice 100. Por taxa necessária eu entendo aquela taxa de câmbio que torna competitivos, no plano internacional, bens industriais que o país produz com aproximadamente a mesma eficiência que seus concorrentes. No caso do Brasil, precisaríamos, por exemplo, dessa taxa-índice 100 para exportar aviões ou automóveis. Suponhamos, porém, que o país descubra petróleo em grande quantidade. Para exportar petróleo, dadas as imensas rendas econômicas envolvidas, a taxa de câmbio índice será, facilmente, 30, e, se o governo não intervir administrando a taxa de câmbio ou impondo um imposto elevado sobre o petróleo, com o aumento das exportações de petróleo ela gradualmente convergirá para 30. Em conseqüência, tudo o mais que é produzido no país fica inviabilizado. O país se desindustrializa e se torna uma Venezuela.
Se, em vez de petróleo, o país começar a exportar soja, laranja, madeira, celulose, nos quais as rendas econômicas não são tão grandes, a taxa de câmbio índice que torna sua exportação para os produtores será, digamos, 70. Novamente, se o governo não tratar de administrar a taxa de câmbio, ela gradualmente convergirá para esse valor. Nesse caso, nem toda a indústria será sucateada, mas uma boa parte dela o será.
O neoliberalismo impenitente, do tipo que hoje administra a economia brasileira, alinhado aos interesses de nossos concorrentes externos, argüirá que não há problema nessa mudança estrutural da economia do país. Afinal, estaria-se apenas "premiando a eficiência". Na verdade, esse tipo de raciocínio, próprio dos fundamentalistas de mercado, esquece duas coisas elementares. Primeiro, que, ao deixar apreciar a moeda, estará-se transferindo a renda econômica do recurso natural para os consumidores à custa do desenvolvimento econômico do país.
O segundo "esquecimento" é o de que o desenvolvimento econômico é o aumento da renda por habitante ou o aumento do valor agregado por habitante. A produtividade aumenta não apenas em cada setor mas com a transferência de mão-de-obra para setores mais nobres, com maior valor agregado per capita. Nesses termos, ao tendermos a ser meros exportadores de produtos agrícolas e de matérias-primas, cujo valor agregado por habitante é muito menor do que o dos produtos industriais e dos serviços técnico-intensivos, estaremos diminuindo nossa renda por habitante. Nossos competidores no Norte, porém, jamais esquecem esse fato elementar quando formulam suas políticas econômicas, quando defendem ferozmente sua propriedade intelectual e, principalmente, quando dizem e repetem que devemos nos esquecer de tudo isso e deixar nossa taxa de câmbio ser regulada pelas sagradas forças do mercado.
Entrevista:O Estado inteligente
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