Vinte anos atrás, Tancredo Neves declarou que a política externa conduzida pelo Itamaraty era um consenso nacional. Hoje, os comentários dos jornais sobre o Conselho de Segurança, a cúpula com os árabes, a candidatura à OMC (Organização Mundial do Comércio), as crises superpostas do Mercosul e da Argentina dão a impressão de que essa área esteja se convertendo em mais uma fonte de críticas ao governo, além das que vão dos juros altos à corrupção do poder.
É verdade que nunca foi fácil construir consenso diplomático. A política externa contribuiu -lembram-se da condecoração a Guevara?- para a queda de Jânio. Como jovem auxiliar de San Thiago Dantas e Afonso Arinos, perdi a conta das vezes em que os acompanhei ao Congresso para rebater interpelações sobre o reatamento com a União Soviética, os primeiros e tímidos passos de aproximação à China, a tentativa de evitar o isolamento de Cuba. Se isso nos soa inverossímil, é porque esquecemos o clima da Guerra Fria, a radicalização da sociedade brasileira em dois pólos antagônicos, na véspera do golpe de 1964, o temor de que a diplomacia fizesse parte dos desígnios conspiratórios atribuídos aos governos de então.
Ninguém mais nega, em nossos dias, que as decisões daquela época foram acertadas. Com o tempo, as inovações trazidas pela "política externa independente" de San Thiago e Jânio, retomadas e ampliadas por Geisel e Azeredo da Silveira, completadas e aperfeiçoadas por Figueiredo e Guerreiro, se viram confirmadas pelos governos da redemocratização, acabando por incorporar-se em definitivo ao patrimônio incontestado não só do Itamaraty mas da nação. O que começou como polêmica terminou por virar lugar-comum.
Consolidou-se, desse modo, a convicção de que, por cima da ruptura ditatorial das instituições democráticas, edificara-se pela diplomacia uma ponte de continuidade entre o passado e o futuro do Brasil. A construção desse entendimento tem paralelos com o consenso bipartidário que Truman logrou com o senador republicano Arthur Vanderberg, presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, o que iria viabilizar a política americana na Guerra Fria e depois. Desde então, apesar da alternância dos dois partidos no poder, tem sido invariável esse apoio suprapartidário nas horas críticas, como se pode ver mesmo agora nas votações unânimes sobre o Iraque.
A principal lição dos paralelos é que consenso nacional exige valorizar a continuidade em lugar da ruptura, não transformar a política externa em plataforma de um só partido e evitar o erro dos anos 60 de dar-lhe conotação ideológica. Conviria, por exemplo, que o mérito de iniciativas como a da comunidade da América do Sul ou das vitórias na OMC fosse partilhado com o setor privado, aos quais tanto devem.
Não se trata apenas de justiça histórica e de elegância moral. Os apoios externos e internos nascem da inclusão dos de fora -a Argentina, os vizinhos- e dos de dentro -predecessores, oposição, diplomatas subaproveitados por não pertencerem ao grupo dominante. Para isso, o profissionalismo suprapartidário é melhor que o recurso freqüente à diplomacia paralela entre partidos afins. Esta é contraproducente, pois corre o risco de ser vista como interesse de uma facção, não do país como um todo. Daí a conveniência de não criar a sensação de que o jogo diplomático visa platéia interna a fim de compensar a alienação provocada pela economia. Talvez tudo não passe de distorção, mas desconfio de que certos aspectos de forma -o abuso da propaganda e do protagonismo, a vaidade de querer fazer crer que não há precedentes, a marca partidária- expliquem parte do recente aumento da antipatia pela política exterior. Seria pena que iniciativas internacionais inovadoras e importantes como muitas das atuais fossem vítimas desses vícios de forma. A solução é, mais uma vez, recorrer à sabedoria de Tancredo quando afirmava existir consenso nacional em torno não de política externa qualquer mas daquela "conduzida pelo Itamaraty", como para acentuar a continuidade, a isenção, o profissionalismo e diferenciá-la de facções ou partidos, civis ou fardados.
Entrevista:O Estado inteligente
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domingo, junho 12, 2005
Fim do Consenso?RUBENS RICUPERO
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