Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, junho 13, 2005

Fernando Luiz Abrucio:Política - Sentido e antídoto para a atual crise


 (1)


Valor Econômico
13/6/2005

Dada a gravidade das denúncias feitas nas últimas semanas, referentes à corrupção em estatais - particularmente nos Correios - e à suposta mesada recebida pelos deputados - o chamado "mensalão" -, o Brasil necessita apurar completamente esses episódios. Não está em jogo apenas a credibilidade do Governo Lula. Uma apuração frágil, que não vá fundo nos problemas, terá reflexos não somente para os políticos governistas, mas também para os oposicionistas. Isto porque muitos eleitores não saberão diferenciar quem esteve ou não envolvido, e assim colocarão toda a classe política numa vala negativa comum. E uma investigação profunda significa três coisas:

1) Descobrir se houve e em que medida processos de corrupção, comprovando cabalmente qualquer conclusão. A democracia não pode viver num terreno propício às denúncias sem provas, com o risco de criarmos incentivos para oposições irresponsáveis e para o frágil exercício da função pública. É sabido que uma investigação mal feita pode levar ao predomínio de uma visão negativa em relação aos que ocupam cargos públicos, todos tachados como "corruptos". Porém, pouco se comenta acerca de outro terrível defeito do denuncismo: cidadãos extremamente qualificados podem se sentir desestimulados a participar da política por conta do conhecimento de alguma injustiça cometida por acusações infundadas, feitas pela imprensa e não averiguadas adequadamente pelo sistema político ou pela Justiça;

2) Enumerar quem são os responsáveis, e quando não houver comprovação de ilícito, dar uma "certidão de inocência" aos acusados injustamente. Exemplo: o deputado Roberto Jefferson disse que todos os deputados do PL e do PP recebiam o tal "mensalão". O sistema político tem o dever de dizer se eles receberam este dinheiro sujo, mas se não for possível comprovar nada em relação a todos ou a alguns (pode ser até em relação a uma pessoa), o Congresso Nacional precisa limpar a honra dos que foram vilipendiados em praça pública. A oposição de ontem, o PT, não se preocupava em corrigir suas ilações erradas, e a de hoje não pode adotar caminho similar, para não cair numa espécie de moralismo golpista que, ao fim e ao cabo, se voltará contra ela no futuro;

3) E, finalmente, elucidar quais são as causas dessa crise, sendo que, naquilo que for possível propor soluções institucionais, apresentar um relatório que reduza as chances de repetição dos fatos denunciados. O argumento da crise que vira uma oportunidade nem sempre se realiza. Muitas crises podem levar a respostas que não atingem o cerne do problema, mesmo quando alguns são punidos. Passar por períodos difíceis não significa aprender com o ocorrido.

Este último ponto é o mais importante para o escopo deste artigo, em razão das limitações deste articulista, que não pode dizer aos leitores se o que está sendo denunciado é verdadeiro ou não. Não tenho bola de cristal, tampouco quero entrar no jogo da leviandade de acusar sem ter provas. Contudo, consigo captar e diferenciar os aspectos da crise vinculados às ações específicas do Governo Lula, colocando num outro plano os fatores sistêmicos, os quais permitem a corrupção e, sobretudo, a possibilidade de uso indevido de recursos públicos para conquistar maioria congressual, qualquer que seja o presidente da República. Afinal, CPIs que trataram de temas similares às atuais denúncias foram feitas ou aventadas em todos os governos recentes.

 A culpa do governo e a do sistema no imbróglio 

O projeto de coalizão política construído pelo Governo Lula tem quatro defeitos básicos. O primeiro se refere ao que venho chamando de hegemonismo petista. Trata-se da vontade de assumir o maior número possível de cargos - inclusive aumentando enormemente o seu leque - somada à desconfiança em relação aos outros partidos - as "más companhias". Tomando como base as cadeiras que o Partido dos Trabalhadores tem no Congresso Nacional em comparação às demais legendas governistas, sua sobre-representação no Ministério e nas estatais é impressionante, algo nunca ocorrido no período democrático recente.

No intuito de ter maioria parlamentar, ademais, o Governo Lula preferiu iniciar as negociações e a distribuição de cargos pelos partidos de menor parte, inclusive ajudando-os a aumentar sua representatividade no Congresso - em outras palavras, o Executivo federal foi propulsor de um intenso troca-troca partidário. No presidencialismo de coalizão existente no Brasil, é impossível governar sem ter um apoio sólido de uma segunda legenda de grande porte, tal qual foi o PFL no período FHC. Errou-se, portanto, em não dar máxima prioridade à coligação com o PMDB.

Mesmo quando os pemedebistas - ou parte deles - foram incorporados ao governo, o foram num modelo de cooptação fragmentada, e não de coalizão. Explico melhor. Tendo como valor orientador o hegemonismo petista, a distribuição dos cargos seguiu uma lógica mais horizontal, de modo que vários partidos ocupavam postos importantes do mesmo Ministério ou estatal, em vez de uma só agremiação comandar cada política ou setor. Isso incitava uma enorme luta interna pelo poder e uma grande desconfiança entre os "aliados". Já se sabia que tal forma de articulação política estava resultando em ineficiência governamental em várias partes do Executivo; a descoberta dos efeitos relacionados à corrupção foi mais recente.

O difícil equilíbrio das coalizões no presidencialismo brasileiro, por fim, exige uma agenda orientadora, para que os instrumentos de mero fisiologismo não predominem. Tal postura havia no primeiro ano do Governo Lula, e em menor medida em 2004, a despeito dos muitos rachas e indefinições no partido dominante. Neste ano, ao contrário, os petistas perderam o sentido do seu projeto. Talvez a necessidade de montar as coligações eleitorais de 2006 tenha nublado a visão da cúpula governista. Ter dois candidatos disputando à Presidência da Câmara foi o primeiro sinal da perda da bússola.

Os erros do Governo Lula, no entanto, não podem apagar uma verdade evidente: os custos relacionados à montagem da coalizão presidencial no Brasil são muito altos, com efeitos perversos para a eficiência governamental, para a accountability que a sociedade deve exercer sobre seus representantes e, o mais triste, para a delimitação ética das relações entre o Executivo e o Legislativo. No próximo artigo tratarei do que é sistêmico nas denúncias atuais.

 Fernando Luiz Abrucio é cientista político e professor da FGV (SP) e da PUC-SP. Escreve às segundas-feiras

 

Nenhum comentário:

Arquivo do blog