Entrevista:O Estado inteligente
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domingo, junho 05, 2005
Fernando Henrique Cardoso :Sair da crise
Há algumas semanas, numa entrevista a uma revista econômica, fiz referência aos riscos de se aprofundar o descolamento entre o sistema político e a sociedade. Não tinha em mente a conjuntura, mas uma tendência que, aliás, não se vê só no Brasil. A democracia representativa encontra-se em questão em muitas "sociedades de massa". O fenômeno é geral (basta ver os índices de absenteísmo eleitoral nos países em que o voto não é obrigatório), mas é mais visível nas sociedades de massas em que há muitos pobres. Nessas, a melhoria do grau de instrução e o desejo de usufruir os bens que o sistema econômico oferece aumentam a pressão, mais do que justa, dos mais pobres por um melhor lugar ao sol. Dei o exemplo da Venezuela para mostrar como, pouco a pouco, o desgaste do sistema político pode erodir a democracia. Lá, o desapontamento com os governos constitucionais do tempo da Ação Democrática e da Democracia Cristã veio a se tornar insuportável durante o governo de um homem honrado, Rafael Caldeira, antecessor de Hugo Chávez.
Houve quem tomasse minha observação como crítica abrasadora ao governo atual. A alguns que dele participam ocorreu o disparate de dizer que minhas observações eram fruto da inveja pelos feitos que supostamente caracterizariam o governo Lula. Era só o que faltava.
Não estou torcendo pelo "quanto pior melhor". Sei separar os interesses do país dos partidários e não confundo Estado com partido. Falava de uma tendência. Preocupa-me a incapacidade de sair da crise política que os atuais detentores do poder vêm demonstrando. A continuar assim, acabarão por tornar sistêmica o que é uma crise conjuntural.
Dada a dificuldade de deter a crise pelos meios que são, na verdade, a causa da própria crise (ameaças, nomeações, pressões, culpabilização permanente do governo anterior e assim por diante), quem sabe fosse o caso de pedir ao governo que escolhesse um caminho de maior grandeza e, se por aí vier, encontrar o respaldo da própria oposição.
Explico melhor o que tenho em mente. Durante o ano de 2003 os partidos que haviam perdido as eleições votaram as medidas que o novo governo enviou ao Congresso, surpresos com a guinada do governo Lula, que assumiu como suas bandeiras que o PT até então combatera (responsabilidade fiscal, demonstrada pelos superávits primários, manutenção dos contratos e até um pouco das reformas que tanto combatera). Não faltou mesmo uma palavra de apoio à responsabilidade da nova equipe econômica, quando o "fogo amigo" ameaçava desestabilizá-la. Qual foi, entretanto, a resposta do governo? Insistir em que haviam recebido uma "herança maldita" e que fariam do Brasil um outro país. Da herança, vivem até hoje, refestelados; de novidade nada de marcante se viu, depois da eficiência nenhuma do Fome Zero e da aceitação, com nomes trocados, da rede de proteção social que havia sido implementada no governo anterior.
Em uma coisa, entretanto, o governo se esmerou: em aumentar sua base política no Congresso. É sabido que sem maioria se torna muito difícil governar. Quando presidente, propus dezenas de reformas constitucionais, que precisam de 2/3 dos votos na Câmara e no Senado, sem contar com sequer um único voto das forças de oposição, PT à frente. Agora, todas as vezes que o governo apresentou propostas de reformas ou de leis às quais antes se opunham (por exemplo, a lei de falências), não faltaram os votos do PSDB, do PFL e de tantos outros partidos ou grupos que hoje estão na oposição. O governo faz, portanto, alianças custosas e inúteis, pois com elas mais desgoverna do que governa, na ilusão de conseguir o que realmente parece lhe interessar: a reeleição.
A possibilidade de reeleição é um dispositivo constitucional benéfico para o país. E pleiteá-la é inteiramente legítimo. Eu também quis a reeleição, mas tinha um propósito de governo. Foi no segundo mandato que consolidamos o câmbio flutuante, base da guinada exportadora, aprovamos a Lei de Responsabilidade Fiscal, implantamos a rede de proteção social. O propósito da reeleição não pode ser simplesmente perpetuar-se no poder.
Onde está o projeto de país deste governo? Por que ele nunca acenou às oposições para um caminho de convergência? Por que não deixou sequer margens para que essa convergência ocorresse, como propôs o senador Cristovam Buarque e eu próprio deixei entrever em entrevista que dei a ele? Preferiram bater estacas no terreno movediço da fisiologia, no qual o governo está agora atolado.
Já não é sem tempo de voltar aos grandes temas da organização do sistema político e do estado, temas que o PSDB trouxe para a agenda política do país e que foram retomados no último encontro do partido em São Paulo: fidelidade partidária, alguma forma de voto distrital, algum tipo de lista fechada de candidatos que dê maior organicidade aos partidos, restrição drástica das nomeações em cargos de confiança e, ao mesmo tempo, a continuação da privatização de certo órgãos, como o Instituto de Resseguro do Brasil (IRB), que foi sustada em meu governo por liminares solicitadas pelas oposições. Imagine-se o que ocorreria hoje se as mais de 120 diretorias das teles ainda fossem preenchidas por nomeações políticas. Não seria melhor que na Petrobras, no Banco do Brasil, na Caixa etc. as nomeações em comissão se restringissem ao número mínimo necessário de dirigentes para imprimir a marca da política governamental?
Fazer avançar uma agenda assim pede grandeza. Exige olhar para além da popularidade momentânea. Requer propor caminhos viáveis para formar maiorias que em vez de corroer as instituições do Estado e da democracia possam reformá-las e fortalecê-las.
Se nada for feito, caberá a quem venha a ser o candidato do PSDB nas próximas eleições apresentar ao eleitorado um programa muito claro com reformas eleitorais, partidárias e da máquina pública. Caberá anunciar de antemão a disposição, se eleito, de recorrer aos mecanismos de consulta à população para validar essas reformas e mesmo, se entender necessário, solicitar ao Congresso uma lei delegada para fazê-las. É urgente buscar caminhos que restabeleçam a confiança do eleitorado em seus representantes e que tornem estes últimos mais responsáveis para com as promessas que fizerem durante as campanhas eleitorais.
o globo
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