Muito se tem discutido, e justamente, sobre a forma do presidencialismo brasileiro, cuja estrutura híbrida dificultaria o exercício de governar, pela ausência de uma maioria parlamentar correspondente. O presidente estaria condenado a fazer coligações que desvirtuariam os seus propósitos originais. Com o problema sendo estrutural, as derrapagens éticas seriam conseqüências. Embora essa avaliação seja correta, apontando para um fenômeno que exigiria determinadas medidas -constantes numa eventual reforma política-, o problema suscitado pelas declarações do deputado Roberto Jefferson sinaliza para uma outra questão, que estaria igualmente presente se o regime político fosse outro.
O problema de fundo está no aparelhamento do Estado pelo PT. O que vemos são só expressões de um projeto de poder |
Parto da premissa de que as declarações de Roberto Jefferson são, em linhas gerais, verdadeiras. Primeiro, porque o deputado era até então tido por interlocutor privilegiado do atual governo. Ministros chegaram a ir à sua casa para evitar que contasse os bastidores das negociações governamentais e partidárias. Havia e há certamente um receio desse interlocutor privilegiado. Não se trata de uma pessoa qualquer.
Segundo, o próprio presidente Lula disse que lhe daria um cheque em branco, mostrando toda a sua confiança nele. Maior demonstração de sua seriedade e honestidade seria difícil.
Terceiro, a reação da cúpula petista é de atordoamento, num comportamento autista revelador do muito que tem a esconder. O fiasco da entrevista coletiva de Delúbio Soares, dirigida pelo presidente do partido, é revelador.
Quarto, quando o deputado concede entrevistas à Folha ou presta esclarecimentos na Comissão de Ética da Câmara dos Deputados, o Planalto estremece, o PT baila e os ministros rodopiam. Se ele falasse mentiras, as atitudes seriam outras, de calmaria. O mar, no entanto, está extremamente revolto.
O problema de fundo reside no aparelhamento do Estado pelo PT. O que estamos observando de práticas fisiológicas, clientelistas e de corrupção propriamente dita, se for confirmado o pagamento do "mensalão", são apenas expressões de um projeto de poder que se serve dos aliados somente em função das conveniências desse projeto.
O PT tem uma tendência hegemônica de tudo controlar, não se contentando com entendimentos entre iguais. Do ponto de vista ideológico, há amplas afinidades entre os setores moderados do partido e o PSDB. Os dois, num certo sentido, poderiam se reclamar da social-democracia européia. Divergências poderiam ser debatidas e superadas num marco democrático de respeito recíproco se as propostas concretas fossem realmente afins.
Ora, o que constatamos é uma posição petista de princípio contra qualquer aproximação maior com os tucanos, e isso desde que o partido era de oposição. A razão de fundo consiste no projeto de poder e numa certa concepção do socialismo e da revolução que o PT reluta em abandonar. E essa não é, decididamente, compartilhada pelos tucanos. A afinidade de superfície esconde desavenças de fundo. Qual foi, então, a escolha do governo e do PT? Acordos com partidos com os quais não tem, nem tinha, nenhuma afinidade ideológica: PTB, PL, PP e PMDB. Eram, inclusive, considerados partidos de "direita".
Neste sentido, o "mensalão" se inscreve numa prática partidária de tipo leninista, segundo a qual os fins justificam os meios. Chama particularmente a atenção nesse episódio como o PT, unido, cerra fileiras em torno de Delúbio Soares e de outros dirigentes partidários, como se a sobrevivência de todos estivesse em questão.
A esquerda petista, em suas várias tendências, fez também a defesa do tesoureiro do partido, transferindo a responsabilidade das condutas inadequadas às "más companhias". Ou seja, trata-se da velha concepção de que o partido é puro, sempre na linha reta, embora companhias de ocasião possam criar problemas, manchar os companheiros.
O problema, contudo, reside em que o PT, ao abandonar o seu lema de "ética na política", abandona uma bandeira histórica que muito contribuiu para a sua ascensão ao poder. O dilema consiste numa fidelidade ética à democracia ou numa fidelidade aética ao partido.
O espectro acenado de que o Brasil poderia se encontrar à beira de uma crise institucional caso a CPI apure verdadeiramente o que está acontecendo é uma mera arma política, que procura causar medo, suscitando uma instabilidade generalizada. Assim, os parlamentares recuariam da disposição de averiguar a corrupção instalada.
Ora, uma eventual crise desse governo seria uma demonstração da falência de uma certa forma de apropriação partidária do Estado. As instituições republicanas serão fortalecidas caso a verdade apareça plenamente, exibindo a vitalidade de um Estado e de uma sociedade que sabem enfrentar os seus problemas pela raiz. Enfraquecidos estariam um projeto de poder e uma certa concepção instrumental da democracia que teimam em recusar uma sociedade organizada segundo a liberdade, segundo a moralização da coisa pública. O PT moderno, verdadeiramente social-democrata, muito teria a ganhar.
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