Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, junho 01, 2005

Charlton Heston e eu por EDUARDO GRAEFF

Esta é uma das melhores que eu conheço do folclore político mineiro (pré-responsabilidade fiscal, claro). As professoras primárias do Estado, com os salários atrasados há meses, protestavam em frente ao Palácio da Liberdade. Lá dentro, o governador recém-empossado reúne o secretariado: "Coisa de louco, sô! Precisamos pagar as professorinhas". O secretário da Fazenda suspira: "Tão cedo não vai dar, governador. Sabe, o seu antecessor deixou um monte de restos a pagar e raspou o cofre". O governador, aflito: "E aí, como é que faz?". Branco total. Até que o secretário da Administração, político tarimbado, deu uma saída: "Bom, governador, já que não é para pagar mesmo, por que o senhor não anuncia um aumento para as coitadas?".


Meu receio não é que a proibição do comércio de armas seja só inócua. É que ela agrave o mal que deveria remediar


O uso que fazemos das leis no Brasil às vezes me lembra essa anedota. No campo penal é recorrente. Toda vez que algum caso mais escabroso aguça a sensação geral de impunidade, alguém sai com a proposta: "Aumenta a pena! Transforma em crime hediondo".
A polícia arquiva uma quantidade espantosa de inquéritos sem apontar culpados. A morosidade da Justiça deixa criminosos identificados escapar da punição graças à prescrição legal. Milhares de mandados de prisão não são cumpridos por falta de vaga nas penitenciárias. Mas tudo bem: se não conseguimos aplicar a lei na vida real, por que não deixá-la mais dura no papel e dar uma satisfação para a coitada da sociedade?
Receio que algo parecido possa acontecer com a proibição do comércio de armas de fogo. A lei já proíbe o porte de arma pelos cidadãos em geral; a venda de armas a pessoas com antecedentes criminais; a posse de armas classificadas como de uso restrito; disparar arma de fogo em área habitada ou via pública; o comércio não autorizado de arma de fogo. E pune as violações com penas que vão de um a oito anos de prisão. Que bom, não é? Melhor, só se fosse de verdade.
Acontece que o Estado não tem conseguido fazer cumprir essas e outras tantas proibições legais mais do que razoáveis e apoiadas pela esmagadora maioria da sociedade.
Que dizer então de uma proibição que para boa parte da sociedade poderá parecer pouco razoável?
No lugar onde eu me criei era normal ter um revólver dentro de casa e aprender a usá-lo. Imagino que no interior do Brasil em geral ainda seja esse o costume. Certo, o mundo mudou. Hoje, nas cidades grandes, quem ensina os meninos a mexer com arma de fogo pode não ser o pai ou um tio, mas o gerente local do narcotráfico. Mas, a quem a nova proibição legal se endereça? Ao traficante e seus pupilos? Diante da lista de artigos do código penal que já violam, não acredito que eles vão ficar muito impressionados. Nem deve passar pela cabeça deles comprar e registrar legalmente uma arma. Muito menos para deixar em casa.
Agora eu me ponho no lugar do homem que, certo ou errado, por amor à tradição ou horror à modernidade, acredita que precisa de uma arma em casa para espantar algum mal-intencionado que venha a forçar a entrada. Será que por causa de uma lei a mais a confiança dele na proteção do Estado vai aumentar tanto a ponto de se convencer de que não precisa de arma nenhuma? Se ele se convencer, ótimo. Mas, e se ele não se convencer? Se, teimosamente, continuar achando que precisa proteger a si mesmo? E se não tiver dinheiro para botar um segurança armado na frente de casa, como muitos de nós fazemos? A quem ele vai atender: à ordem do Estado ou à voz da sua própria necessidade?
Meu receio não é que a proibição do comércio de armas seja simplesmente inócua. É que ela acabe agravando o mal que deveria remediar e esse brasileiro teimoso acabe sendo empurrado para os desvãos entre a lei e o costume onde habitam os jogos de azar (exceto as loterias federais e estaduais) e o tráfico e uso de drogas (exceto as engarrafadas por multinacionais).
O contrabando de armas pesadas já é um rico filão do crime organizado. Qual o problema de botar mais uns revólveres, pistolas e a respectiva munição no catálogo para a clientela que hoje se abastece nas lojas de armas?
Tenho inveja dos lugares do mundo onde as pessoas nem pensam em ter uma arma em casa porque acham desnecessário. E dos lugares onde em todo caso não usam arma de fogo para atacar ou se defender de outras pessoas. Mas não me consta que esses lugares tenham chegado lá por decreto. Se for conferir, antes de restringir ou eventualmente proibir a oferta, eles passaram por mudanças sociais, políticas e culturais que diminuíram a demanda de armas na mesma proporção em que sedimentaram a confiança das pessoas na proteção do Estado.
Em dois minutos você e eu poderíamos listar uma dúzia de medidas que ajudariam a aumentar a nossa confiança no Estado. Um primeiro item modesto, mas promissor, seria confiscar os telefones celulares que os chefes do crime organizado usam para comandar seus soldados de trás das grandes. Se nem isso conseguimos... Bem, pode ser que seja mais fácil tomar as armas dos cidadãos tementes da lei. Ou não.
Na dúvida, tenho que admitir: se houver o tal referendo, voto contra a proibição do comércio de armas. Em desagravo às professorinhas e em tributo à minha insegurança ancestral.
folha de s paulo

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