Derrubado pelo comando das Forças Armadas em 1945, Getúlio Vargas não esperou a virada do ano para exibir a extraordinária popularidade consolidada durante o que o ex-ditador chamava de "meu curto período no poder". Um curto período de 15 anos, durante os quais acumulara, ao lado de devoções irredutíveis e amizades comoventes, também ressentimentos e ódios incontornáveis. Nas eleições gerais de dezembro, multidões de eleitores permitiram a Getúlio vingar-se da queda recente. As normas fixadas pela Justiça Eleitoral permitiam que o mesmo candidato disputasse simultaneamente, e por diferentes estados, vagas no Senado e na Câmara. Um campeão de votos não iria perder a chance oferecida por essa brasileiríssima singularidade. Getúlio elegeu-se senador por São Paulo e pelo Rio Grande do Sul. Em vários estados, foi o mais votado entre os candidatos à Câmara. A legislação determinava que o eleito optasse por um dos cargos conquistados. Foi como senador pelo Rio Grande que Getúlio Vargas reapareceu na frente política, pronto para a luta na planície.
Três sessões do Congresso foram suficientes para convencê-lo de que não conseguiria combater com eficácia naqueles campos minados. Os apartes a seu primeiro discurso, somados, superam em volume de palavras o texto lido por Getúlio. Dezenas de vozes interromperam o orador com contestações irônicas, ferinas, gaiatas, ofensivas, ferozes. Em outras duas sessões, teve de ouvir em silêncio invectivas brutais. Não poderia deter a tempestade, nem se dispunha suportá-la. Preferiu retirar-se para a estância na fronteira com o Uruguai.
Forçado por ventos contrários a afastar-se da chefia da Casa Civil - e do coração do poder -, o ministro sublinhou o discurso de despedida com a arrogância que apressou a queda. "Eu sei lutar no Planalto e na planície", gabou-se. No Planalto não sabe, tanto que foi devolvido à planície. Ali talvez já não saiba combater como antes. Nesse terreno, a oposição sempre ocupa as melhores posições e jamais carece de munição. Dirceu terá de defender o governo tanto da artilharia oposicionista quanto do impenitente fogo amigo. E também enfrentará pistoleiros que esperam com impaciência o momento do duelo.
José Dirceu não é Getúlio, nunca foi presidente nem ditador. Mas governou o Brasil, como primeiro-ministro de Lula, até a divulgação do videobandido protagonizado por Waldomiro Diniz, assessor, amigo e antigo companheiro de apartamento. Nesse curtíssimo período, empilhou em todos os partidos ressentimentos e inimizades que poderão tornar-lhe insuportável a vida no Congresso.
Mau orador, terá de confrontar-se com Roberto Jefferson, a quem sobra retórica e falta escrúpulo. O ex-companheiro vai responsabilizar Dirceu por todos os pecados do mundo e, certamente, lembrar as visitas que o ministro lhe fez para pedir ajuda na tentativa de enterrar a CPI dos Correios. "Só faltou ajoelhar-se", zombará.
Se repetir que "a direita quer derrubar o governo socialista do PT", ouvirá a réplica irada dos socialistas do PT expulsos do partido por insistência de Dirceu. Caso critique a política econômica, a contestação virá dos petistas fiéis ao governo. Será arriscado atacar alianças pouco edificantes: foi ele quem as costurou.
Melhor refugiar-se por algum tempo, como Getúlio. Sem sonhar com o impossível retorno ao centro do poder.
A expansão do pântano federal expulsou das manchetes uma notícia que o Cabôco considerou estarrecedora: Sérgio Naya, aquele dos edifícios assassinos, foi absolvido pela Justiça. Por achar que os homens da lei não chegarão ao exagero de prender as vítimas, o Cabôco quer saber se ninguém acabará na cadeia. E pergunta: não seria o caso de prender a areia que Naya usou no lugar do cimento?
Um rosto só é pouco
O lado escuro do Brasil, viu-se na terça-feira, não cabe num rosto só. Enquanto o Congresso escancarava a face horrível da corrupção federal, outra apavorante se exibia no presídio de Presidente Venceslau (SP). Em Brasília, bandidos em liberdade implodiram a aliança governista. Bandidos na cadeia são mais espertos: líderes do Comando Vermelho (CV) e do Primeiro Comando da Capital (PCC) resolveram unir os grupos, amotinar-se e decapitar cinco dissidentes. A aliança foi costurada por Fernandinho Beira-Mar, engaiolado perto dali, num presídio de segurança máxima - onde os guardas supostamente ouvem tudo o que se diz. Fernandinho deve ser craque em telepatia.
As chamas ainda ardem
A história inspirou o filme Mississipi em chamas. Em 1964, três ativistas da luta pelos direitos civis foram assassinados perto de Filadélfia por racistas ligados à Ku Klux Klan. Em 1967, dos 18 réus, só seis foram condenados - a penas de até sete anos de prisão. O único acusado de homicídio, Edgar Ray Killen (foto), livrou-se da cadeia porque um dos 11 jurados se negou a "punir um pastor". Nesta semana, o mundo soube que o filme não terminou. Aos 80 anos, prisioneiro de uma cadeira de rodas, Killen será submetido a novo julgamento. Nos EUA, a idade não absolve ninguém.
Neste junho, Paulo Maluf escapou de um processo judicial por ter mais de 70 anos.
Gol contra leva a taça
O deputado Beto Albuquerque usou uma imagem futebolística para deixar claro que a volta de José Dirceu vai endurecer o jogo na Câmara: "Ninguém neste governo tem canela de vidro para ter medo de bola dividida. Ninguém".
Ou Beto esqueceu que há mulheres no governo ou até Marina Silva anda batendo um bolão no campinho da Granja do Torto.
Falta aos negros a Mãe Gentil
Flávio Ferreira Sant'Ana foi executado em fevereiro de 2004 por um grupo de sete policiais militares que caçavam um ladrão na Favela Flamenguinho, em Osasco, na Grande São Paulo. Tinha 28 anos e era dentista. Disso os assassinos saberiam ao conferir-lhe a documentação. Até então, sabiam apenas o visível: além de jovem e forte, era negro. Essa circunstância, no Brasil, transforma em suspeito mesmo quem obedece desde o útero aos Dez Mandamentos.
A caminho do trabalho, Flávio foi avistado pelos caçadores. O julgamento durou segundos: só poderia ter sido aquele o autor do assalto a um comerciante do lugar. Integrantes da turma que primeiro atira e depois pergunta, os PMs mandaram bala. Constatado o engano, promoveram um segundo assassinato do inocente. Para incriminá-lo, colocaram um revólver na mão do dentista morto. E juraram aos superiores que Flávio, ao ser abordado, reagira a tiros.
A afrontosa versão começou a desmoronar quando se soube que o pai da vítima é o policial militar Jonas Sant'Ana, que passara para a reserva depois de uma trajetória sem máculas. Aos depoimentos de familiares e amigos do dentista juntou-se o do comerciante assaltado. Ele descreveu a execução de Flávio, que não exibia qualquer semelhança física com o ladrão. O comandante da PM visitou o pai do assassinado. Pediu-lhe desculpas e informou que os criminosos estavam presos.
Três continuam na cadeia, quatro estão soltos. Todos, incluídos os muitos amigos dos matadores, andam inquietos com o julgamento, marcado para agosto. E crescentemente audaciosos, como constatou no fim de maio a cabeleireira Marinela Ferreira Sant'Ana, irmã do dentista. No meio da tarde, quando banhava o filho Mateus, com menos de 2 anos, ouviu o barulho de pontapés na porta. Abriu a janela e viu 15 soldados do batalhão da PM a que pertencem os colegas assassinos. Estavam prontos para outra feroz demonstração de solidariedade.
Os três filhos de Marinela começaram a chorar. Dez policiais ocuparam o quintal. Cinco arrombaram a casa, reviraram os dois cômodos e destruíram os dois armários. Ambos irritados com o choro das crianças, um invasor apontou a pistola para Mateus e outro colocou sob a mira da metralhadora a filha mais velha, Maiara, de 9 anos. "Cala a boca!", ordenavam. Os outros berravam para a mãe a mesma pergunta: "Onde estão as armas e as drogas?". Marinela repetia a resposta: "Minha única arma é a Bíblia".
A ação, que durou meia hora, não foi o único ato de violência, nem seria o último aviso perturbador. Desde o assassinato do irmão, o lugar onde Marinela mora há nove anos virou opção preferencial da PM. Quase diariamente, viaturas circulam pela rua. Das janelas, a luz pressaga dos faroletes ilumina o interior da casa. "Seu irmão morreu porque merecia", costuma ouvir a cabeleireira. O quintal é ocupado com freqüência por PMs enfurecidos.
O marido capitulou em abril: resolveu buscar paragens menos perigosas. Abandonada, Marinela pretende continuar por lá enquanto não fica pronto o apartamento no conjunto residencial que o governo está construindo para urbanizar a favela. Mesmo depois da mudança, seguirá cuidando da ONG Afrovida. Marinela criou-a depois da tragédia. "A Afrovida procura mostrar aos negros de Osasco que eles precisam defender seus direitos", diz. "Não vou desistir dessa luta. Só assim a morte do meu irmão terá sentido". É uma luta desigual: a invasão de maio foi apenas o capítulo mais absurdo de uma seqüência de abusos retomada dias depois. As ameaças prosseguem. Marinela é uma brasileira indefesa.
Só na letra do Hino Nacional a pátria é a Mãe Gentil de todos os filhos. Com os negros, sobretudo se pobres e favelados, costuma ser cruel, impiedosa. É a mãe brutal.
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