Amigos enterram cadáveres metafóricos. São confidências personalíssimas, ou fatos sigilosos (edificantes ou não, pouco importa), um momento de fraqueza ou de brutalidade, qualquer segredo engavetado na memória de ambos - e de mais ninguém. Amizades genuínas se alicerçam na palavra e no silêncio. Sobretudo na solidariedade irrestrita: aconteça o que acontecer a um deles, as mãos do outro estarão estendidas, sem cobranças preliminares. Recriminações, se pertinentes, ficam para depois.
Amigo é coisa pra se guardar, canta Milton Nascimento. É graça alcançada, é bênção distribuída parcimoniosamente. É mesmo coisa pra se guardar com cautela e carinho, porque até ligações amarradas por enterros secretos podem ser esgarçadas pela falta de cuidados. Sobram exemplos de amizades aparentemente inarredáveis que acabaram reduzidas a antagonismos mortais. Por tudo isso, são poucos os amigos de fé. O clube que os reúne não comporta multidões.
O presidente Lula tentou revogar essa imposição do destino. Instalado no Planalto, promoveu a companheiro - medalha semântica até então restrita a militantes do PT - todo brasileiro que já aprendeu a dizer "mamãe". Tantos milhões de companheiros lhe pareceram insuficientes. Lula talvez queira 1 milhão de amigos, como no sonho musicalizado por Roberto Carlos. Na campanha, fazia um amigo por mês. No primeiro ano de governo, a média subiu para um por semana. Chegaria a um por dia se não tivesse chegado este outono perturbador.
No universo político brasileiro, amigo é uma palavra banalizada pelo abuso. No Congresso, adversários irredutíveis costumam saudar-se aos berros quando cruzam nos corredores: "Meu amigo!" "Como vai o querido amigo?" (Os mais superlativos preferem "queridíssimo".) Também o presidente Lula, rendido à liturgia do cargo e aos minuetos do Cerimonial, recorre ao vocabulário do farisaísmo. Mas Lula é diferente.
Ele de fato acredita na possibilidade de, com quase 60 anos, ampliar ilimitadamente o volume de amizades sinceras. Tanto acredita que o Brasil viu nascer e engordar um Clube dos Novos Eternos Amigos do Lula. Para ingressar na associação, é só declarar apoio ao governo, elogiar tudo o que o presidente diz ou faz, lembrar as origens humildes. Torcer pelo Corinthians não é obrigatório. Mas ajuda.
O curto convívio decorrente da campanha eleitoral bastou para que o bom companheiro José Alencar assumisse, além da vice-presidência, o posto de amigo de infância. "Parente vale menos que amigo", explica Lula. "Parente a gente não escolhe". Se Alencar precisou de alguns meses, uma noitada foi suficiente para o deputado Roberto Jefferson, presidente do PTB.
À saída do jantar oferecido a Jefferson em outubro passado, Lula comunicou à nação o parto sem sobressaltos de uma bonita ligação afetiva. "Eu daria ao Roberto Jefferson um cheque em branco e dormiria tranqüilo", jurou Lula. Quando estreou na TV o videobandido documentando roubalheiras nos Correios, supostamente promovidas por afilhados de Jefferson, o presidente não sustou o cheque: "Roberto Jefferson é parceiro e assim deve ser tratado", ordenou aos Altos Companheiros do governo. Agora é tarde para rasgá-lo.
Jefferson passou o cheque adiante no que deveria ser uma sessão da Comissão de Ética da Câmara. Deveria. Por decisão do amigo petebista, o que a televisão exibiu foi um medonho barraco na gafieira administrada pelo Clube dos Novos Eternos Amigos. A gafieira não tem estatuto. Os sócios não têm pudores. Nesse espetáculo impróprio para menores de 80 anos, Jefferson partiu para a briga sem regras. Distribuiu sopapos entre os integrantes do Clube, vizinhos do PT e inquilinos do Planalto.
Só Lula foi poupado. Com adjetivos carinhosamente escolhidos, Jefferson descreveu um inocente que vive no mundo da Lua. Enquanto isso, seus amigos roubam cá na terra.
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