Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, junho 14, 2005

AUGUSTO NUNES :Governo ignora o tamanho do perigo


JB

Raul Fernando do Amaral Street, colunável muito festejado nas colunas sociais nos anos 60 e 70, tinha na certidão de batismo uma espécie de habeas-corpus preventivo, com validade perpétua. O prenome composto identificava o garotão bem-nascido. O sobrenome andava claudicante, mas mantinha suficiente charme para abrir-lhe as portas das melhores festas do eixo Rio-São Paulo. E havia, de quebra, o apelido: Doca.

Aparentemente adequado a surfistas, combinava à perfeição com aquele paulista de fina estampa que, na juventude, fora salva-vidas em piscinas em Miami. Quase cinqüentão, exibia um invejável currículo de sedutor. Casara-se com mulheres lindas, namorara dezenas de outras. Elas pagavam a conta. Não se queixavam.

Em 1979, quem pagava as contas era a belíssima mineira Ângela Diniz, companheira de Doca havia alguns meses. Cometeu o erro de queixar-se, exaurida por sucessivas manifestações de ciúme (e outros excessos) do parceiro genioso. Num fim de tarde em Búzios, pediu a Doca que juntasse os pertences e se fosse. Ele concordou, mas parou na esquina, com uma idéia na cabeça e o revólver na bolsa. Matou-a com quatro tiros.

Aos trunfos da certidão de batismo, Doca juntaria mais um: naquele Brasil, quem matava alegadamente por amor não era um mero assassino. Era "criminoso passional", que agira "em legítima defesa da honra". Isso mesmo. Legítima defesa da vida é figura jurídica adotada há séculos em centenas de países. Advogados espertos inventaram no Brasil a legítima defesa da honra. Nas décadas anteriores, o truque vinha garantindo a absolvição de dúzias de matadores. Em 1979, livrou Doca Street da cadeia.

No tribunal de Cabo Frio, ninguém percebeu que acabara de consumar-se um histórico ponto de inflexão. Juiz, promotor, réu, advogados, jurados, platéia --- ninguém compreendeu, naquele instante, que Doca seria o último beneficiário da "legítima defesa da honra". Sem aviso prévio nem grandes barulhos, o Brasil revogou na prática a aberração jamais codificada. Dera-se o ponto de inflexão.

No segundo julgamento em 1981, os advogados de Doca voltaram a invocar essa esperteza bacharelesca que transforma réu em vítima e vítima em vilã. Sentenciado a 15 anos de prisão, o assassino cumpriu a pena. Depois desapareceu no purgatório dos matadores. Nunca mais a "legítima defesa da honra" livrou assassinos da cadeia.

Esses fascinantes pontos de inflexão sempre mudam um país para melhor. Costumam ocorrer em momentos de agudo descompasso entre o que acham os governantes e o que deseja a sociedade, entre o que imagina o Planalto e o que pensa a planície. Em 1981, "criminosos passionais" só continuavam a existir no mundo do Judiciário. Para os brasileiros honestos, todos os assassinos eram essencialmente homicidas, expostos como os demais às leis que regem crimes de morte.

Neste junho de 2005, provavelmente ocorreu outro ponto de inflexão sobremodo relevante no país onde, como as vacinas, certas leis não pegam. Os brasileiros compreenderam que foi longe demais a roubalheira em labirintos federais. Que ladrão é ladrão, use ou não terno e gravata. Que ninguém está acima da lei, mesmo se protegido por imunidades parlamentares ou com distintivos de pai da pátria na lapela. Compreenderam, sobretudo, que lugar de corrupto é na cadeia.

O comportamento dos pastores do cerrado e sinuelos de rebanhos sugere que os mandarins nativos ignoram a mudança fundamental. Tentam desviar da rota a CPI dos Correios. Simulam desconhecer o ignominioso esquema do "mensalão". Procuram desqualificar um acusador aos pés do qual até recentemente se ajoelhavam. Atarantados, fingem esquecer que também o governador goiano Marcone Perillo tem provas testemunhais a apresentar. E que o grande pântano, de uma forma ou de outra, acabará drenado.

Os comandantes governistas ignoram, sobretudo, que a vítima de todos os escândalos é o Brasil decente. Essa nação de bom tamanho enfim acordou. Não está gostando de ser tratada pelos donos do poder como se abrigasse multidões de idiotas.

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