Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, junho 14, 2005

Arnaldo Jabor: Hoje é o dia em que Jefferson vai cantar

o globo
Não sei o que estará dizendo hoje, terça-feira, na Câmara, porque vos escrevo do longínquo passado de anteontem, domingo, pois o ritmo histórico está vertiginoso no país. Como em toda boa crise, o tempo se acelera. Há 15 dias, éramos outro Brasil. Agora, viramos um texto de realismo fantástico, com o Jefferson cantando na janela "Cuore ingrato" e os políticos correndo feito perus bêbados embaixo. E me lembro da frase do Nelson Rodrigues: "Em Brasília não há inocentes; todos são cúmplices..."

Que estará declarando Jefferson na tribuna, esse homem que é hoje o "sujeito da História" brasileira, titulo que só os comunistas se atribuíam — "sujeitos da História"? Imagino os gestos do criminalista operístico jogando mais m... no ventilador. Será que estará provocando um "salto qualitativo" em nossa pobre pátria? É quase maravilhoso que o capataz do Collor seja um protagonista de mudança. Jefferson pode provocar uma reforma política com as denúncias que lhe jorram pela goela como uma ária do Rigoletto. Esplêndida terra em que só os grandes golpes nos fazem andar para frente.

No momento atual, duas figuras me fascinam neste strip-tease: Jefferson e Zé Dirceu. Só um profissional do fisiologismo como Jefferson poderia nos revelar as mágicas da corrupção como um "Mr. M" do PTB; só um "craque" como ele poderia nos mostrar as engrenagens da sacanagem, assim como um outro grande didata, PC Farias (que Deus o tenha), pôde ensinar. PC foi uma espécie de Gilberto Freyre da corrupção, se bem que PC foi discreto e leal e morreu em silêncio. Jefferson, vaidoso, não resiste ao exibicionismo de seu rancor e denuncia os que achavam que poderiam usá-lo impunemente.

Sou fascinado por Dirceu e Jefferson e pela previsibilidade de seus trajetos. Sabíamos que isso poderia acontecer com o PT no governo, mas não tão cedo e tão abertamente. Jefferson e Dirceu jogaram como uma zaga, uma tabelinha, dois espelhos se refletindo, um pelo fisiologismo e o outro pelo ideologismo. Um não existiria sem o outro. Sem Dirceu, Jefferson não teria tido poder, e, sem a paisagem de "jeffersons" em Brasília (há muitos), Dirceu não teria tecido seu imenso erro de avaliação politica. Um completa o outro. Dirceu deu poder a Jefferson, com o PT patrocinando a mudança de partidos, para aumentar a base do governo nesta esparrela chamada presidencialismo de coalisão. E Jefferson, desprezado, traído por outro traidor, o boquirroto Maurício Marinho, vinga-se agora de Dirceu, que sempre o tratou como "gente de segunda". Dirceu também queria mudar a História e está conseguindo — não pela "vitória revolucionária", mas pela repetição do tradicional equívoco da velha esquerda: a subestimação da vida real. Tínhamos medo do PT e da "ruptura" que ele poderia trazer e ela acabou vindo pelo moroso apodrecer — uma "lenta e gradual" ruptura.

Dirceu (e seu espírito dentro do PT) armou todo o roteiro de cooptação da "direita" (como ele nomeia os aliados). Para ele, numa democracia "burguesa", nada mais natural que usar a corrupção "burguesa". Mas, como sempre, esqueceram dos tortos desejos de cada indivíduo, de "delúbios e sílvios e maurícios". O "coração ingrato" que Jefferson uiva na janela é Dirceu. Não estou chamando Dirceu de corrupto, mas ele fez a cama onde os gatos se deitaram e rolaram.

Dirceu provoca (ou provocava) no imaginário de Lula e do PT o temor reverencial que os comunistas clássicos despertam nos "quadros". Sua bagagem guerreira de estudante, cubano, exilado, operado, carbonário e espião lhe dava uma aura de "007 cubano" que faz (ou fazia) os petistas tremerem. Todo grande narcisista integral causa este impacto. Todo paranóico seduz. Dirceu entrou nesse governo como uma espécie de "tutor" do Lula. Desde 1980, Lula é tratado pelos velhos leninistas com um "operário em construção". Já publiquei frase de Genoino e Greenhalgh na época, tratando-o de "elemento útil", cooptável para a causa do socialismo. Nunca entenderam a grande originalidade de Lula: sua política de resultados possíveis, sua espontânea noção de social-democracia. Aprisionaram-no num círculo de ferro stalinista, onde hoje ele é vítima. Queriam dominá-lo e conseguiram. Lula se deslumbrou, virou um marqueteiro, mas é honesto e pode ser que agora acorde para o conto do vigário leninista em que caiu.

Foi através de Dirceu que se estabeleceu a inclemente oposição a FHC nos oito anos de mandato; todas as tentativas de saneamento social-democrata de FHC foram sabotadas pelo PT de Dirceu. E agora, talvez inconscientemente (concedamos), vemos que ele também sabotou a social-democracia instintiva de Lula.

Duas frases de Zé Dirceu me impressionaram muito essa semana.

A primeira foi: "O PT é maior que o Governo", como se o PT tivesse inventado o Lula, quando Lula foi quem inventou o PT que, depois, se arvorou em "centralismo democrático" com o aval de intelectuais deslumbrados.

O outro "ato falho" memorável de Dirceu foi outro dia na imprensa, justificando a crise do PT: "Estamos pagando o preço para formar maioria no Congresso". Isso foi dito por ele, na santa inocência dos narcisistas.

Que será que está acontecendo hoje, oh... homens desta terça-feira gorda? Haverá uma reforma política saída da goela de Jefferson? Será que desta vez conseguiremos fixar alguma mudança de costumes? Talvez não, porque a força de recomposição da canalhice é imensa. Ajudada pelo atraso judiciário, a matéria suja da formação nacional se recompõe como o rabo de um lagarto.

Collor nos fez entender, sinteticamente, os cinco séculos de sacanagens coloniais, como numa maquete. E houve um progresso ético que FHC conseguiu capitalizar. Talvez agora o PT esteja estragando tudo.


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