"São casos em que a mãe, quase semprea mãe, não se calou diante dos abusossexuais sofridos pela filha e, domando o preconceito, a vergonha e o medo, denunciou o agressor – o pai, quase sempre o pai"
É lamentável que não seja possível promover exibições em massa, de norte a sul do país, de um modesto documentário, lançado recentemente em Florianópolis. Chama-se Flor de Pessegueiro, foi dirigido por Ângela Bastos e a bela trilha sonora é assinada por Miriam Moritz e Ricardo Fujii. O documentário é modesto porque não custou uma fortuna nem é um primor técnico – mas é de um vigor tocante e de uma atualidade desesperadora. Seu foco é um tema delicadíssimo: as mães que tiveram a enorme coragem de denunciar o abuso sexual do qual suas filhas foram vítimas. Em 26 minutos, o documentário choca e revolta e incomoda e sufoca ao exibir mães contando, entre soluços de uma dor que parece ter séculos de idade, coisas como:
• A menina de 7 anos que era sexualmente abusada pelo dono do restaurante onde a mãe trabalhava. Certo dia, a mãe, suspeitando que um sangramento vaginal da menina pudesse ser uma hemorragia, levou-a ao médico. Ouviu o diagnóstico que lhe roubou a alma: "A mãe não desconfia de nada? Mãe, sua menina foi abusada", disse-lhe a médica.
• O caso da menina de 14 anos de idade que ficou grávida do próprio pai. A menina foi autorizada a abortar.
• A filha que, vencendo o medo de ser abandonada pela mãe, finalmente lhe revelou: "Foi meu pai que me estuprou". A mãe conta que nunca mais conseguiu esquecer essa frase – as palavras, o som, a entonação – saindo da boca da filha.
• A menina que, aos 4 anos e 3 meses, contou que era abusada pelo pai. As agressões, entre outras manifestações, levaram a criança a desenhar árvores em formato de pênis.
• O caso da jovem que, depois da separação dos pais, ficou morando com o pai e foi sistematicamente abusada por ele dos 12 aos 22 anos de idade. A filha, surda desde os 2 anos, só recentemente começou a recuperar a audição graças a uma cirurgia. Ela é bonita, suave, delicada. A mãe conta que, quando a filha era criança, dormia tão suavemente que a chamava de "minha flor de pessegueiro". A filha é Anahi Guedes de Mello, hoje tem 29 anos – e, corajosamente, falou com o rosto à mostra ao lado da mãe, Marlete.
Todos os depoimentos foram colhidos em cidades da região metropolitana de Florianópolis e têm um dado em comum: são casos em que a mãe, quase sempre a mãe, não se calou diante da descoberta dos abusos sofridos pela filha e, domando o preconceito, a vergonha e o medo, denunciou o agressor – o pai, quase sempre o pai.
Há um padrão terrível em casos assim: uma quantidade significativa, às vezes até mais do que a metade, das mães cujas filhas são sexualmente abusadas foram, elas próprias, vítimas de abuso na infância ou na adolescência. Diante disso, especialistas concluem que a violência tende a se repetir geração após geração. Uma trava possível para evitar a reedição do inferno é a denúncia. Flor de Pessegueiro é vigoroso por isso: encoraja as mulheres a trazer a público sua experiência dramática.
Seria bom se Flor de Pessegueiro fosse exibido pelo país afora. Ficaríamos uma sociedade melhor.
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