No próximo dia 5, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) faz cinco anos. Idade ainda tenra, que requer cuidados para a planta não morrer. Hoje é moda gabar a LRF. Parece que todos os partidos sempre foram seus fãs ardorosos. Muitos se esqueceram das críticas que fizeram e dos votos contrários que lhe deram na Câmara dos Deputados. O PT, por exemplo, para justificar sua posição, dizia que a lei apenas geraria superávits primários para pagar banqueiros (matéria que sequer é tratada na lei). Não satisfeito, uma vez aprovada, ingressou contra ela com uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal.
Rememoremos um pouco, pois a obtenção de um novo regime fiscal é mais do que um ato isolado, é o desfecho de um percurso. Este vem de longe. Ainda no governo Sarney algumas medidas importantes foram tomadas, como a criação da Secretaria do Tesouro e a eliminação da "conta movimento" no Banco do Brasil. Essa conta possibilitava ao governo fazer frente a gastos não previstos no Orçamento nem aprovados pelo Congresso, por intermédio de um fluxo de recursos inflacionários que iam diretamente do Banco Central para o Banco do Brasil. Gastava-se assim irresponsavelmente, sem preocupação com a disciplina fiscal.
A Constituição de 1988, que não primou por verificar se havia a adequação entre recursos disponíveis e benefícios justos para resgatar a secular dívida social do país, aprimorou, entretanto, o modo de elaborar o Orçamento. Estabeleceu a obrigatoriedade do envio de uma lei de diretrizes orçamentárias, para haver um diálogo mais responsável entre o Executivo e o Legislativo e impediu que este pudesse criar despesas sem previsão de receita. Além disso, dispôs sobre a elaboração de uma lei geral das finanças públicas, dispositivo que só viria a ser regulamentado mais de dez anos depois.
Nesse intervalo, o processo inflacionário, que começara ainda nos anos 70, com os choques do petróleo, e se agravara ao longo dos anos 80, com a sucessão de planos de estabilização malsucedidos, continuou a embaçar a visão dos administradores públicos e da sociedade em geral quanto à real situação das contas públicas. Quando, depois da debacle do governo Collor, durante o governo Itamar Franco, iniciamos o processo de estabilização da economia, o quadro de descontrole fiscal era geral. Os estados se financiavam endividando-se e dando o calote em seus próprios bancos (passando a conta ao Banco Central), quando não buscavam dinheiro pagando juros aos bancos privados de 6% ao mês, dando as receitas futuras de impostos (as ARO) como garantia. O calote à União era regra: muitos estados e municípios não pagavam os empréstimos tomados na Caixa Econômica, nem, por exemplo, na Eletrobrás. Só para resolver esta última questão, durante o governo Itamar, em 1993, foram refinanciadas dívidas de US$ 22 bilhões.
Quando me tocou, como ministro da Fazenda, iniciar o processo de estabilização da economia, contendo a inflação, viu-se logo que ele teria conseqüências na gestão financeira da União, dos estados e dos municípios. Isso em um momento no qual a União estava carente de recursos fiscais, graças à redistribuição de impostos estabelecida pela Constituição em favor de municípios e estados. Tivemos que recapitalizar o Banco do Brasil e a Caixa Econômica, instituições que sofreram as conseqüências do fim do imposto inflacionário. Refizemos o Orçamento da União em 1993 e, de 1994 em diante, tivemos que ajustá-lo efetivamente aos recursos disponíveis. Fechamos ou privatizamos os bancos estaduais, modificamos a gestão de várias empresas públicas, para adequá-las à economia de mercado. Privatizamos outras tantas, reconhecemos vários esqueletos, isto é, dívidas ocultas das estatísticas, mas realmente existentes, saneamos os bancos privados com o Proer e assim por diante. Tarefa que ocupou todo meu primeiro mandato como presidente e que, é bom que se diga, obrigou-nos a aumentar a carga tributária e a expandir a dívida pública. O saneamento da economia pelas medidas acima apontadas, e outras mais, explica cerca de 70% do aumento da dívida interna do governo federal entre 1994 e 2002.
Assim, continuamos um trabalho que vinha de antes, impondo novas regras para os estados e municípios terem suas dívidas financiadas pela União com compromissos firmes com o ressarcimento delas. Limitamos os gastos com pessoal, estabelecendo penalidades para quem não cumprisse as regras (e, principalmente, executando-as) e assim por diante, em uma trabalheira de carpintaria pouco espalhafatosa, mas essencial. Por isso, quando alguns políticos por arrogância ou desconhecimento, ou quem sabe por ambos motivos, dizem que em meu primeiro mandato não houve preocupação com a questão fiscal, expressam apenas seu despreparo para entender a vida pública.
Para se chegar à Lei de Responsabilidade Fiscal e para haver condições técnicas e políticas para gerar superávits primários houve todo um percurso. Anos a fio foram dedicados à criação de instituições (leis e práticas) e à pregação em favor de uma nova mentalidade, uma nova cultura, como insistia o ministro Malan, na qual a responsabilidade fiscal passasse a ser encarada como parte do processo democrático, como compromisso essencial com a transparência e a governabilidade.
Em meu segundo mandato, quando o ministro Martus Tavares, assessorado por técnicos da competência de José Roberto Afonso e Guilherme Gomes Dias, concluiu a proposta da Lei de Responsabilidade Fiscal e o governo, depois de consulta pública, enviou-a ao Congresso, houve uma grande mobilização da sociedade em apoio à lei. O Congresso não apenas a aprovou em tempo relativamente curto, como aperfeiçoou-a em certos aspectos. O Brasil mudara.
Será mesmo? O atual governo, pela voz do Ministério da Fazenda, parece não só prezar a responsabilidade fiscal como desejar aperfeiçoar outros mecanismos orçamentários que a reforçam. Mas há setores que nem pensam nem agem dessa forma. Há pressões políticas contínuas para "dar um jeitinho" no não cumprimento da lei pelos municípios amigos. Os déficits da Previdência, pública e privada, crescem assustadoramente e as leis que deveriam regulamentar a última reforma previdenciária aprovada (tímida) dormem em gavetas esplêndidas. Aprovam-se contratações de milhares de novos funcionários, aumentando os gastos permanentes, e para fazer face a isso, pressiona-se por aumentos de impostos que, se no passado se justificavam para consolidar a estabilização, hoje apenas irritam e mesmo indignam a sociedade.
Quem sabe a comemoração da Lei de Responsabilidade Fiscal volte a lembrar que um novo regime fiscal é tarefa de cada dia e que sem que as cabeças mudem, a lei é de pouca valia?
O GLOBO
Entrevista:O Estado inteligente
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