Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, maio 25, 2005

Heranças malditas PAULO RABELLO DE CASTRO

Quem não reconhece os contornos de sua própria história acaba condenado a repeti-la. As assim chamadas "heranças malditas" correspondem a comportamentos recorrentes de nossas lideranças, que, entretanto, gostaríamos de atribuir ao DNA de toda a população brasileira.
A inflação, por exemplo, seria uma "herança maldita" do Brasil contemporâneo. Por isso, durante muitos e muitos anos, ouvimos que não seria possível combater a inflação, muito menos debelá-la, pois isso causaria a morte do crescimento econômico. Os brasileiros que leram jornais, entre o fim do "milagre" dos anos 70 até, finalmente, o Plano Real, em 1994, aprenderam na cartilha da "herança maldita" que o processo inflacionário em nosso país seria algo peculiar, exigindo tratamento especial, que se converteu na mania dos famigerados congelamentos de preços e mudanças de moedas dos anos 80, uma catástrofe financeira e jurídica da qual até hoje sofremos seqüelas importantes.
De fato, não havia a tal "cultura inflacionária" a impedir um combate eficaz à alta dos preços. Não era mania, hábito arraigado, vontade empedernida do povo de remarcar e deixar que remarcassem preços numa espiral enlouquecida. O que havia era uma elite econômica confortavelmente instalada no "way-of-life" inflacionário. Grupos de interesse fortíssimos desfrutavam as vantagens de ganhar com a corrida inflacionária, que se chamou de ciranda financeira. Aplicadores em caderneta de poupança, na classe média, pensavam estar inseridos nesse ganho, porque viam seus depósitos saltarem 20%, 30%, 40% num só mês. E o setor produtivo ficara desobrigado de procurar a produtividade, palavra excluída do dicionário econômico por duas décadas, já que mais importante era buscar proteção comercial contra a concorrência interna e externa e exercer poder de remarcação de preços e procrastinação de pagamento aos fornecedores.
Aí está a origem virulenta da "correção monetária", prática nefasta, porém fortemente entranhada no nosso mundo jurídico e econômico, apesar da aparente estabilidade da moeda. Por herança maldita o Brasil tem, de fato, a força do interesse de grupos sobre o da coletividade. Esse, quando finalmente emerge, como ocorreu, tardiamente, na edição da nova moeda (o real), é logo abafado por outros tantos aparatos ideológicos com os quais se organiza a estrutura de poder em nossa sociedade fractária.
Refiro-me, agora, à mais nova crendice da elite confortável, a tese de que só com "juro alto" se combate inflação no Brasil. Numa interessante entrevista do Nobel americano Paul Samuelson, ao jornalista Robinson Borges, do "Valor" (16/5, pág. A12), em que o nonagenário mas ativo pensador fala de tudo e, um pouco titubeante, também de Brasil, a reportagem publicada ressalta, na manchete, "Nobel diz que juro alto é mal necessário", explicando (o que Samuelson não disse) que nosso país ainda estaria pagando caro pela "herança maldita" da hiperinflação.
A alimentação de uma crença popular depende de intensa repetição e zero de reflexão. Segundo a teoria punitiva do combate à inflação, o juro é a resposta para a alta dos preços, não importando o prazo do remédio nem as circunstâncias (fiscais e financeiras), tampouco a dosagem, muito menos o método. Em outras palavras, o remédio, para ser bom, é porque arde na ferida. Enquanto nós, pobres "herdeiros", nos distraímos com a fictícia medicação, sérias e reais conseqüências se instalam no desdobramento da prática punitiva.
A primeira é que a inflação não cai, mas a produção despenca, transformando nossa breve recuperação num vôo de galinha. A segunda é que a brecha da vulnerabilidade externa, penosamente obturada pelo ciclo exportador mundial, vai se abrir, de novo, mais adiante, pela insustentável valorização do real decorrente dos juros internos. Terceiro é que a gestão corrosiva da dívida pública, sob o peso de encargos de juros monumentais, destrói o esforço fiscal do próprio governo federal, aniquilando o sacrifício orçamentário dos Estados. Quarto, e pior, impõe-se a mais desigual distribuição de ganhos na sociedade.
Na seqüência, o país estará menos preparado contra a próxima crise política interna ou da que virá do lado financeiro internacional. Perderá tempo. Adiará investimentos. Tornar-se-á presa mais fácil, no amargado coletivo social, dos discursos neopopulistas que tanto horrorizam o imaginário político da nossa elite. Ela mesma produzirá seu bumerangue "Chávez".
Não se culpe, porém, qualquer herança maldita. Não há nada de errado com nosso DNA. Desculpas Não Aconselham. A origem de nossas doenças está, quase sempre, no próprio remédio.
folha de s paulo

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