Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, maio 24, 2005

Rubens Barbosa:As Nações Unidas e os Estados Unidos


Difícil que Bolton aceite a ampliação do Conselho de Segurança...

O Senado dos EUA deverá votar, nesta semana, a indicação, feita pelo presidente George W. Bush, de John Bolton para embaixador norte-americano nas Nações Unidas. O resultado é incerto devido à oposição do Partido Democrata e de alguns republicanos que tentaram desqualificá-lo por conduta inapropriada e por seu dogmatismo.

Poderia parecer estranho ocupar este espaço com a nomeação do governo norte-americano para o cargo de embaixador dos EUA nas Nações Unidas. Pelas suas implicações de política interna e pelo seu significado em relação à política externa, sobretudo em relação às Nações Unidas, não resisto à análise do fato, visto do ângulo de um país que está interessado na reforma e no aperfeiçoamento dessa organização.

Ao anunciar sua nomeação, a secretária de Estado Condoleezza Rice qualificou Bolton de 'diplomata duro' que tem uma 'comprovada experiência de multilateralismo'. De fato, Bolton tem comprovada experiência de multilateralismo, até aqui, porém, sempre para rebaixá-lo ou subordiná-lo aos interesses norte-americanos.

Bolton, figura controvertida no cenário político de Washington, marcou sua vida pública, sempre na extrema direita do Partido Republicano, por uma atitude ultraconservadora.

Ativo membro dos 'neoconservadores', grupo republicano ultra-radical, defendeu sistematicamente posições confrontacionistas com instituições multilaterais e tratados internacionais, entre eles o Tribunal Penal Internacional.

Conheci John Bolton em Washington, antes mesmo de ser nomeado subsecretário no Departamento de Estado. Depois, como subsecretário, mantive algumas reuniões de trabalho com ele naquilo que talvez tenha sido a primeira manifestação explícita do unilateralismo norte-americano na política externa e o primeiro golpe de força numa organização internacional.

Em reunião em seu gabinete no Departamento de Estado, tomei conhecimento das primeiras cargas, injustas e infundadas, contra o diretor-geral da Organização para a Proibição de Armas Químicas, o embaixador brasileiro José Bustani. O episódio, que enfraqueceu a Organização, terminou com a saída de Bustani por pressão dos EUA, comandada por Bolton, para constrangimento dos países membros.

Em relação às Nações Unidas, Bolton, nos últimos anos, desqualificou a legitimidade da ONU como fórum com regras criadas pela comunidade internacional para garantir a paz e a segurança coletiva. Em discurso público em 1994, Bolton declarou que 'as Nações Unidas não existem' e que 'se o prédio do Secretariado da ONU em Nova York perdesse dez andares não faria a menor diferença'. Defendeu a suspensão da contribuição dos EUA à instituição e foi um dos formuladores da posição neoconservadora da supremacia militar dos EUA em relação à Carta das Nações Unidas, que os 'neocons' consideram ultrapassada. Referindo-se à menção do secretáriogeral Kofi Annan às Nações Unidas como 'a única fonte de legitimidade no uso da força', Bolton afirmou: 'Se os EUA permitirem que essa afirmativa prevaleça, a liberdade para o uso da força para defender o interesse nacional norte-americano será provavelmente inibida no futuro.'

Na defesa dessa visão, Bolton mostrou ser um defensor intransigente da Doutrina de Segurança Nacional dos EUA, redigida por Condoleezza Rice, como conselheira de Segurança Nacional, que defende a filosofia da 'paz através da força nas relações internacionais', com ataques preventivos e mudança de regime em países que ameacem a segurança nacional norte-americana.

Com essa significativa folha corrida internacional, cabe examinar o que está por trás da indicação de alguém tão contrário às praticas, às ações e à filosofia da ONU para ser o representante do país mais importante política, financeira e militarmente daquela instituição.

Uma interpretação benevolente poderia levar à convicção de que no seu segundo mandato o presidente Bush pretenderia gradualmente livrar-se da linha dura, neoconservadora, militarista e radical representada, entre outros, por Bolton (e também por Paul Wolfowitz, que deixou o Pentágono para ser presidente do Banco Mundial) e iniciar com Condoleezza Rice uma política menos unilateral nas relações internacionais.

A saída de Bolton da direção da área que formula e executa a política de não-proliferação, uma das prioridades do governo norte-americano na atual gestão, pode ser uma decisão positiva para aproximar os EUA da Europa e evitar focos de atrito com a comunidade internacional em áreas sensíveis como o Irã, Cuba, Taiwan.

A realidade é outra. A defesa intransigente que Bush fez publicamente, ao insistir que Bolton é a pessoa necessária nas Nações Unidas no momento em que se discute a reforma da instituição, por ser firme e direto, mostra uma clara estratégia da Casa Branca: ocupar uma tribuna de grande visibilidade e repercussão para a divulgação e defesa da agenda neoconservadora.
Parece difícil que uma personalidade como a de John Bolton possa aceitar, para citar apenas um exemplo, a ampliação do Conselho de Segurança das Nações Unidas com a inclusão de seis novos membros permanentes, dando maior representatividade e eficiência aos trabalhos daquele órgão, quando isso vai tornar mais complexo o processo decisório para os EUA, mesmo sem o direito de veto. Talvez por isso Condoleezza tenha nomeado diplomata de sua confiança para monitorar e controlar a ação de Bolton na ONU.

Nunca me esqueci da reunião na sala de Bolton. Ao entrar em seu gabinete, ao lado da memorabilia usual, reparei, não sem um misto de surpresa e de apreensão, que na sua mesa de trabalho, de forma bem visível, repousava ameaçadoramente uma granada de mão, objeto não muito usual em gabinetes de diplomatas...

Rubens Barbosa, consultor, presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da Fiesp, foi embaixador do Brasil nos EUA e na Grã-Bretanha

O Estado de S. Paulo

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