Entrevista:O Estado inteligente

sábado, maio 28, 2005

O devoto de Darwin

VEJA Entrevista: Richard Dawkins

O zoólogo britânico diz que a teoria
da evolução contém uma verdade
universal e que há beleza no modo
como a ciência explica a vida


Jerônimo Teixeira

No início do ano, o zoólogo britânico Richard Dawkins, de 64 anos, visitou o arquipélago equatoriano de Galápagos, no Oceano Pacífico. Estava seguindo os passos da excursão científica realizada em 1835 por seu herói intelectual – o naturalista inglês Charles Darwin, autor de A Origem das Espécies, obra que se tornou a base da biologia moderna ao lançar, em 1859, a idéia de que a vida evoluía por meio da seleção natural. Autor de verdadeiros clássicos da divulgação científica como O Gene Egoísta e O Relojoeiro Cego, Dawkins é – ao lado do paleontólogo americano Stephen Jay Gould, que morreu de câncer em 2002 – um dos maiores propagandistas do darwinismo. Seu novo livro, O Capelão do Diabo, que está sendo lançado no Brasil pela Companhia das Letras, é uma coletânea de ensaios que dá uma boa amostra de sua paixão pela ciência – e de sua oposição à religião, tema de uma das seções mais incendiárias do livro. Por telefone, de seu escritório na Universidade de Oxford, onde leciona, o zoólogo concedeu a seguinte entrevista a VEJA.  

Veja – Passados quase 150 anos desde a publicação de A Origem das Espécies, qual a força do pensamento de Charles Darwin?
Dawkins – A conquista de Darwin é universal e atemporal. Os processos evolutivos descritos por ele devem acontecer em qualquer lugar do universo onde porventura exista vida. Em um dos ensaios de O Capelão do Diabo, afirmo que um visitante extraterrestre certamente teria mais interesse em discutir as idéias de Darwin do que as de pensadores como Freud ou Marx – a quem ele já foi comparado –, cujo trabalho é de interesse mais limitado, paroquial, "terreno". Quando releio Darwin, sempre me surpreendo com quão moderno ele soa. Considerando que suas concepções de genética estavam erradas, é impressionante como ele conseguiu acertar em todo o resto. Com um princípio básico, a seleção natural, o darwinismo é capaz de explicar uma enorme variedade de fenômenos complexos. É uma teoria muito elegante.  

Veja – Pode-se dizer que o darwinismo é hoje uma teoria bem compreendida e assimilada?
Dawkins – Infelizmente, não. As pessoas pensam que o darwinismo é uma teoria do acaso, quando é na verdade a teoria que nos permite escapar ao acaso na biologia. Darwin não diz que organismos tão formidavelmente complexos quanto aqueles que vemos sobre a Terra surgiram de maneira fortuita. A seleção natural não opera cegamente: de geração em geração, ela preserva os genes que trazem vantagens e elimina aqueles que trazem desvantagens aos organismos. É assim, dessa forma gradual, que a evolução acontece. Muitos argumentam que a beleza e a complexidade da vida só podem significar que por trás dela há um projeto deliberado, um "desenho inteligente" feito por Deus. Não é assim: a alternativa para o acaso não é um "projeto", mas a seleção natural.  

Veja – Hoje há um embate entre evolucionistas como o senhor e os criacionistas. Por que o senhor considera inaceitável a idéia de que a vida foi criada por Deus?
Dawkins – Postular a existência de um Deus que criou a vida é o tipo de idéia que só complica as coisas. É um raciocínio contraprodutivo, pois traz a necessidade adicional de explicar a existência desse ser. A partir de elementos muito simples, a seleção natural mostra como e por que a natureza abriga a imensa complexidade, a imensa variedade dos seres vivos existentes. Esse é o poder desse conceito. Com ou sem um ser divino no início de tudo, a seleção natural ainda teria a mesma capacidade de explicar o funcionamento da natureza.  

Veja – Por que o senhor chama a religião de "vírus da mente"?
Dawkins – Isso está relacionado à idéia de meme, que lancei em 1976 no meu livro O Gene Egoísta. Cunhei o termo – que já foi incorporado pelo dicionário Oxford – em analogia com gene. Assim como os genes são unidades auto-replicadoras que passam de uma geração a outra, também os memes seriam capazes de replicar a si mesmos e passar de uma mente para a outra. Esse conceito é útil se explica por que uma idéia em particular se disseminou. Um meme pode ser uma idéia científica, uma melodia, um poema, e nesse caso ele se dissemina por seus méritos. A religião seria um memeplexo, isto é, um conjunto de memes que costumam florescer na presença uns dos outros, tal como acontece com certos complexos de genes. Mas, ao contrário dos bons memes, a religião não se dissemina porque é útil. Ela salta de uma mente para outra como uma infecção, ou como um vírus de computador, que só se propaga porque traz embutida uma instrução codificada: "Espalhe-me".  

Veja – O senhor já observou que a ciência pode ser "religiosa, no sentido não sobrenatural da palavra". Poderia explicar essa expressão?
Dawkins – Eu não estava falando da religião que acredita em um Deus que ouve nossas preces. Einstein considerava-se religioso, embora não acreditasse em nenhum plano sobrenatural. Ele só usava a palavra "religião" para definir seu sentimento de espanto e mistério diante do universo. Eu empreguei a palavra no mesmo sentido em um ensaio, mas isso talvez não seja recomendável. Há muita gente ansiosa por deturpar formulações como essa. Muitos gostariam de trazer pessoas como Einstein para o bloco dos crentes, ao qual ele certamente não pertencia.  

Veja – Um cientista não pode ser religioso?
Dawkins – Pode, e muitos cientistas são. Mas eu não consigo entender suas razões. Talvez seja um tipo de cérebro repartido: eles mantêm suas crenças religiosas em um nicho, e a ciência em outro. Tenho dificuldade em simpatizar com isso. Se eu mantivesse crenças contraditórias, tentaria refletir sobre o tema até me decidir por um lado ou outro.  

Veja – O senhor afirma que evolucionistas não deveriam participar de debates públicos com partidários do criacionismo. Por quê?
Dawkins – Essa é uma proposta minha e do paleontologista americano Stephen Jay Gould. Pretendíamos escrever um texto conjunto sobre o tema, mas Gould morreu antes de revisar o esboço que apresentei a ele. Os criacionistas buscam esse debate para conquistar um verniz de respeitabilidade intelectual. Eles não têm esperança de "vencer" a discussão: querem apenas ser reconhecidos no mesmo palanque ocupado por um cientista de verdade. Por isso devemos evitar esses encontros.  

Veja – Essa recusa não passaria a idéia de que os darwinistas são arrogantes ou temem o debate?
Dawkins – Talvez sim. É muito difícil lidar com esse problema. Gould e eu podemos estar errados, mas essa é a posição que tomamos, e, no momento, eu ainda a sustento. Talvez, para evitar o perigo de conferir status demais ao criacionismo, o ideal seria que apenas estudantes de pós-graduação ou mesmo de graduação participassem desse tipo de debate. Eles estariam tão capacitados quanto eu para refutar os criacionistas, cuja argumentação não é tão refinada assim.

Veja – A espécie humana não teria uma necessidade natural de religião?
Dawkins – Não creio que seja uma necessidade universal. Se a demanda é por reverência e espanto diante da vida e do universo, a ciência pode satisfazê-la. Se a demanda é por conforto diante da morte, então talvez a ciência não possa satisfazê-la. Seja como for, reconhecer que existam necessidades pessoais ou coletivas atendidas pela religião não equivale a dizer, de maneira nenhuma, que exista verdade nas concepções religiosas.  

Veja – O senhor acredita que algum dia a humanidade possa viver sem religião?
Dawkins – Não por um longo tempo. E eu jamais proporia qualquer forma de proibição à atividade religiosa. A resposta está na atividade à qual me dedico: a educação. Quanto mais educação houver, mais teremos discussões racionais e pensamento inteligente, e mais difícil será para a religião sobreviver.  

Veja – Há beleza na ciência?
Dawkins – A verdade é bela em si mesma. E existe uma elegância própria do conhecimento. Einstein comovia-se com a beleza das equações. Além disso, os fenômenos que biólogos ou astrônomos estudam – árvores, pássaros, estrelas – são belos em si mesmos. Lidar com eles é lidar com o belo.

Veja – Quando se discute bioética, a questão da clonagem humana é sempre levantada. Seria mesmo o problema mais importante hoje?
Dawkins – Não, não é um problema tão importante. As pessoas se opõem a essa idéia por razões variadas. Todas as tecnologias reprodutivas envolvem a morte de embriões, e há um preconceito religioso contra isso. Há quem reaja com nojo diante da idéia de clonagem humana. Imaginam, digamos, centenas de Saddam Hussein marchando no mesmo passo, o que de fato é uma perspectiva aterrorizante. Mas ela está calcada em idéias falsas como, por exemplo, a de que um clone não teria personalidade individual. Geneticamente, gêmeos idênticos são clones um do outro – e têm, como bem sabemos, personalidades independentes. Há muita mistificação sobre esse tema.  

Veja – O senhor acredita que esse tipo de clonagem vá ocorrer?
Dawkins – Não com a tecnologia que temos hoje, que produziu a ovelha Dolly, um único clone, ao custo de muitos embriões perdidos. De qualquer forma, a criação de um clone humano nunca foi proposta seriamente. Propõe-se, isso sim, a clonagem de células-tronco, para propósitos médicos. As únicas objeções a isso, repito, têm motivação religiosa, e são estúpidas.  

Veja – Devem-se impor limites ao conhecimento científico?
Dawkins – Questões sobre o que é certo ou errado não comportam verdades absolutas. São matéria de julgamento e ponderação. A ciência não pode decidir sobre esses problemas – pode apenas demonstrar incoerências nas posições que tomamos. A decisão, por exemplo, de proibir ou não o desenvolvimento de armas biológicas não é um problema científico. É algo que tem de ser discutido pela sociedade em geral – políticos, juristas, cidadãos.  

Veja – O senhor já demonstrou entusiasmo pela idéia de que um dia talvez seja possível reconstituir geneticamente o elo perdido entre o ser humano e os outros primatas. Como seria isso?
Dawkins – O geneticista sul-africano Sydney Brenner propôs que um dia talvez possamos, a partir do genoma do homem e do chimpanzé, fazer uma projeção retrospectiva até nossos antepassados. Uma espécie de "média" entre os dois genomas seria próxima do ancestral comum de homens e chimpanzés, que viveu em torno de 6 milhões de anos atrás. Com esse código genético em mãos, talvez a tecnologia embriológica do futuro seja capaz de criar esse ser vivo, um espécime do nosso antepassado comum, o elo perdido. Teríamos vivo, respirando na nossa frente, um ser que é intermediário entre o homem e outra espécie animal. Um experimento desse tipo seria um duro golpe contra a arrogância humana. Isso poderia mudar o antropocentrismo da nossa ética e da nossa moral. Hoje, todos os intermediários estão extintos, o que fomenta a idéia falsa de que ocupamos um espaço à parte na natureza. A biologia atual não vê o homem como o pináculo da evolução. O darwinismo não faz valorações desse tipo. Quando um darwinista fala em um animal "melhor" quer dizer apenas melhor em reproduzir-se, em passar adiante sua carga de genes.  

Veja – O senhor tem escrito muitos artigos criticando o presidente americano George W. Bush. Faz isso como cientista ou como cidadão?
Dawkins – Existem cientistas cujo interesse em política é tão dominante que acaba colorindo suas pesquisas, inclusive as mais técnicas. Creio que esse tipo de mistura não é aconselhável. Digamos que me pronuncio como um cidadão com um nível elevado de conhecimento científico. Bush não tem nenhum interesse em ciência, a não ser na medida em que ela possa ser usada para fins militares, e é uma ameaça ao meio ambiente, pela recusa em assinar o Protocolo de Kioto. O mundo seria um lugar melhor sem ele.  

Veja – O senhor recentemente esteve em Galápagos, onde Darwin fez muitas observações que embasaram sua teoria. Ainda é um local privilegiado para observar a evolução?
Dawkins – Sim. As ilhas são muito novas, têm só 3 ou 4 milhões de anos, e nesse tempo limitado houve nelas uma diversificação de espécies fabulosa. É impressionante como os animais lá são pouco ariscos. Talvez porque tenha havido muito pouca predação, você pode caminhar até muito próximo deles. E eles não fogem. É como estar em um imenso zoológico a céu aberto, sem jaulas. Muito pouco mudou desde a época em que o jovem Darwin esteve lá, em 1835, perguntando-se exatamente sobre o "mistério dos mistérios" que era o surgimento de novas espécies. Embora o triunfo de Darwin pudesse ter sido gestado em qualquer lugar do universo, ele foi fruto de uma viagem de cinco anos ao redor do planeta, na qual Galápagos foi uma das escalas mais importantes.

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