Estou com saudade de 1994. O Plano Real tinha dado certo, o Brasil tinha ganho a Copa do Mundo, os dias eram azuis e estava sendo eleito um presidente novo, com palavras novas, representante da elite cultural que sempre esteve fora do poder. FHC venceu, apesar da inveja assustadora de seus colegas de Academia, e era um político que trazia nova “agenda progressista”, que até então se resumira a um confuso sarapatel de “rupturas” revolucionárias, vagos sonhos operários, tudo numa algaravia de conceitos getulistas, terceiro-mundistas e leninistas que nos levaram às derrotas desde 35 até 68.
FHC era a única coisa nova que surgira, além do Lula de 1980, com a política sindical de resultados, uma primitiva social-democracia. FHC chega ao poder acentuando a importância da democracia e da reorganização republicana. Apesar das críticas mecanicistas que sofreu (“neoliberal”, submisso a Washington, aliado a ACM) nada apagava sua novidade: vitória sobre a inflação, a substituição da utopia pela “política do possível”, troca de “solução” por “processo”, responsabilização da sociedade civil etc... Vivíamos um otimismo inédito na política brasileira, com uma fé na “razão” até ingênua, diante das sabotagens fisiológicas que viriam, comandadas pelo museu leninista do PT.
Pela primeira vez na vida, tive esperança de uma mudança profunda no país. FHC chegara numa época propícia, depois do imenso trauma da Era Collor, que nos dera uma grande fome de limpeza ética e de República. Além disso, a chamada sociedade civil estava orgulhosa por sua reação altiva no episódio do impeachment.
Collor teve o “mérito” de ser uma espécie de explosão da caldeira da sordidez, uma maquete dos vícios nacionais que nos trouxe um desejo de decência política.
Os aliados a que FHC se ligou estavam ainda acoelhados depois da chuva de lixo do período Collor e isso permitiu que ele pudesse contar com as alas mais “modernas do atraso” (oh... supremo oxímoro!...) para introduzir práticas renovadoras. A inflação zero ajudou muito nesse otimismo e, mesmo errando aqui e acolá, FHC conseguiu um upgrading político no país, propiciando a eleição de Lula que, aí sim, com 25 anos de espera, foi saudada pela esquerda e pelos intelectuais como uma injeção de “povo” no mundo “de elite” de FHC. Os anos FHC foram um saneamento básico, uma psicanálise do imaginário político, e seu governo não pode ser julgado apenas por um viés economicista, apesar dos erros e das quatro crises internacionais que enfrentou. Deixou uma “herança bendita” agora em plena desconstrução.
A atitude do PT, querendo enfiar marxismo na “insuficiente democracia”, foi decompondo o movimento de renovação que o PSDB tinha conseguido, apesar de tudo. A importância da administração e das reformas internas, a importância da sutileza nas articulações interpartidárias foi destruída pela ansiedade e pela truculência dos bolchevistas chegados ao poder. A verdade é que os petistas sempre desconfiaram da democracia “burguesa”, tentando usá-la como um meio para chegarem não se sabe a quê, talvez a um socialismo imaginário. Não entenderam com suas doenças infantis que a democracia não é um meio, mas um fim em si mesma. Hoje, a equipe de Palocci, os dois ministros “neoliberais” Furlan e R. Rodrigues (todos debaixo de fogo amigo) são a única coisa que resta dessa época de mudança. Hoje vemos que a novidade petista no poder foi, na realidade, um regresso ao passado. Hoje vemos que o horror brasileiro está retomando sua forma inicial, como o rabo de um lagarto se recompondo.
Quando vi o Roberto Jefferson reformando sua silhueta de elefante, ficando magro como um disfarce de si mesmo, invadindo acintosamente as estatais endinheiradas, entendi que a Era Collor estava viva e voltava como um retorno do reprimido, como panela de pressão destampando. A confusão mental petista e sua genuflexão aos fisiológicos lhes permitem um descaramento sublime. Alguma coisa essencial está fazendo água no país. Já dá para ouvir a “ouverture” da ópera bufa, a volta da tradicional maldição do “Mesmo”, a grande empada maldita de canalhas patrimonialistas que clamam pelo Atraso.
FHC anestesiava-os habilmente, mas o PT no poder perdeu a catadura barbuda e temida. E os sem-vergonhas perderam o respeito pelo governo. Os equívocos do PT são retratados por dois fatos recentes: Dirceu e Genoino ajoelhados aos pés de Garotinho e Jefferson e as lágrimas de crocodilo do Suplicy. Falo essas coisas mas não desejo o mal para o governo atual; claro que meus inimigos não acreditam, mas falo com a remota esperança de que alguma coisa fosse ouvida. Será que ninguém muda? Onde está o velho hábito comuna de fazer autocrítica? Os petistas querendo agir dentro do “sistema” estão virando caricatura dos fisiológicos que desprezavam.
Estamos andando de marcha a ré. Não é apenas o escândalo com a depravação, mas o desânimo da população em relação à sua impunidade, é a ausência de alguma agenda política, inexistência de sucessos. Espalha-se pelo Brasil um sentimento de caos, muito além da política; é quase uma peste antropológica que se reativa.
Há mais de um ano, falei em perigo de “neojanguismo” (antes do FHC). Quando falei isso não me referia ao golpe de 64. Falava do período anterior ao golpe, quando grassava a ilusão utópica, bravatas populistas para substituir possibilidades de progresso, a convocação do imaginário para substituir a realidade.
Se eu fosse o Lula (oh... sonho ambicioso...) parava de me deslumbrar com a própria trajetória, emagrecia como o Roberto Jefferson e botava para quebrar, como o velho Lula de 80: rompia alianças, despedia gente, rompia com corruptos notórios, mudava o ministério para técnicos competentes e tentaria recuperar o respeito. Ficaria mais só; mas, e daí? Qual a vantagem do presidencialismo de coalizão se o Governo não consegue emplacar nada? Coalizão ou não-coalizão, nessa altura, tanto faz...
O GLOBO
Por que Lula não fará o que Jabor sugere por RicardoNoblat
Primeiro, porque ele não está ouvindo mais ninguém. Ninguém mesmo.
Quer dizer: ouvir até ouve. Mas só faz o que lhe dá na cabeça. Não foi assim até meados do ano passado. Está sendo assim desde então. Ele perdeu a confiança em alguns dos seus principais conselheiros. Mas não tem coragem de mandá-los embora. Hoje, confiança, confiança mesmo ele só tem em dona Marisa.
Segundo, Lula não fará o que Jabor sugere porque o sucesso escalou a barba dele e se aninhou na cabeça. Ele acredita, acredita com toda a sinceridade que está fazendo tudo certo. Que o governo vai muito bem, obrigado. E que o resto é intriga da oposição que pretende enxotá-lo do poder. Da oposição e de boa parte da mídia.
Lula sente-se vítima do preconceito. Já foi. Mas ainda julga que é.
Terceiro, Lula detesta ter que conviver, negociar e compor com políticos - até mesmo com os do seu partido. Mas imagina que se romper com os mais fisiológicos poderá perder a chance de ganhar um novo mandato. Anda dizendo que não pagará qualquer preço para se reeleger. Que se um dia acordar invocado, desistirá da reeleição. Lorota. Está fascinado com as miçangas do poder. Não quer abrir mão delas.
Por fim, aposta que o bom desempenho da economia e que a falta de um concorrente de peso lhe assegurarão um novo mandato. Não percebe que no caso dele é a política, estúpido, que poderá derrotá-lo.
A área econômica do governo vai bem porque o PT não conseguiu se meter nela como desejava. E porque Lula, que não entende do riscado, sacou que deveria deixá-lo a cargo de quem entende. As demais áreas vão mal ou mais ou menos porque o PT se meteu nelas e porque o próprio Lula ora se mete, ora não.
Às vezes se mete quando não deveria. E às vezes não se mete quando deveria se meter.
BLOG Ricardo Noblat
Entrevista:O Estado inteligente
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