Entrevista:O Estado inteligente

domingo, maio 22, 2005

Miriam Leitão:Só a democracia

Só a democracia tem os remédios para os males que nos afligem. Nunca é demais lembrar, principalmente numa semana em que o pais viu cenas tão explícitas de corrupção. Sempre há quem pense, em momentos assim, que uma onda autoritário-moralizadora é do que o Brasil precisa. O Brasil precisa é de que os poderes da República se esforcem mais na execução de suas tarefas constitucionais.

Cena um: um pacote de dinheiro é entregue ao chefe do departamento de compras dos Correios, Maurício Marinho, que displicentemente o põe no bolso e afirma:

— Nós somos três e trabalhamos fechados. Os três são designados pelo PTB, pelo Roberto Jefferson. O PTB me dá cobertura. Ele me dá cobertura. Fala comigo. Não manda recado. Eu não faço nada sem consultá-lo. Tem vez que ele vem do Rio para acertar um negócio. Ele é doidão.

Cena dois: um grupo de deputados estaduais de Rondônia conversa com o governador Ivo Cassol. A deputada Ellen Ruth é particularmente didática:

— Você é empresário, você sabe. O empresário dá suporte a político, mas depois ele quer trabalhar. É uma via de mão dupla. O empresário que apóia o Ronilton Capixaba, quando ele está na Assembléia, ele quer obra. (...) Dentro do orçamento do estado, você está levando o seu como executor. Isso é de praxe.

Sobre a primeira cena, já se organiza uma CPI. Essa pode ser uma oportunidade para que o Congresso preste contas à sociedade. Será uma pena se for mais um palco de cenas histriônicas de quem quer aparecer na televisão.

A segunda frase pode ser entendida como prova de que a corrupção é ato banal. "É praxe." Se for esse o entendimento do cidadão, que os políticos se apressem. Por que o cidadão votará? Por que gastará R$ 2,47 bilhões por ano só com a Câmara? Por que ele defenderá as instituições democráticas? O risco que se corre, senhores deputados e senadores, vai muito além dos seus mandatos.

A confiança do cidadão nas instituições teve um alento no Rio de Janeiro. O que a juíza Denise Appolinária puniu de forma exemplar, exigia punição. No Rio, as leis eleitorais foram pisoteadas. Este jornal publicou, dia após dia, as cenas do absurdo: kits escolares distribuídos em outubro, dinheiro vivo na sede do PMDB, cadastramento para os projetos sociais do estado submetidos à exigência de título eleitoral. Parecia a República Velha.

O país vive uma crise política. O governo tem errado insistentemente na sua relação com o Congresso. O presidente ignora o Congresso quando deveria negociar as votações estratégicas para seu plano de governo, e afaga um deputado quando deveria estar defendendo apuração rigorosa. "Parceiro é solidário com seu parceiro", teria dito Lula sobre o deputado Roberto Jefferson. Um presidente da República não protege parceiros. A frase é ruim e não deveria ter sido dita — mais uma das lamentáveis frases do presidente!

Sempre há os que acham que, diante da corrupção, o melhor a fazer é acabar com os políticos e entregar o país a um salvador da pátria que governe com os técnicos.

É o risco que corremos. Ele não é imediato. Ninguém conspira nas esquinas, mas pode surgir do fastio do cidadão diante de tantos flagrantes de mau comportamento.

Cada político individualmente é substituível, pode ser afastado sem que as instituições corram riscos. Todos os políticos juntos são a forma como se organiza a democracia representativa, sistema no qual escolhemos viver. E não escolhemos por capricho. Foi uma decisão amadurecida ao longo dos anos da nossa História em que não a tivemos e pudemos saber, da forma mais dolorosa, a falta que a democracia faz.

Não se brinca com o sentimento dos cidadãos. A excessiva esperteza come o dono, ensinou mestre Tancredo. A complacência e o conformismo com os maus modos de alguns pode ser o caminho para que todos sejam equiparados.

Vários males nos afligiram nos últimos dias. Eles são parecidos com outros episódios, mas é da repetição que nasce a sensação de que o sistema político não vale o esforço feito pelo contribuinte. O acúmulo dos escândalos — e da desfaçatez — vai erodindo a confiança na democracia como a única força moralizadora aceitável.

Muitos continuarão dizendo que o que acontece no Brasil neste momento não é o aumento da corrupção, mas, sim, da eficiência da apuração. Mas até quando o brasileiro comum, que não consome diariamente informação, pode entender todas as nuances do que está acontecendo? O que qualquer brasileiro quer, independentemente do grau de instrução, é o conforto de saber que os casos serão apurados, punidos e que o dinheiro dos impostos está em boas mãos.

A democracia é frágil por sua própria natureza. Cada fato separado pode não ser letal; todos juntos são demolidores da confiança nas instituições. A defesa descarada do nepotismo, as frases quase diárias do presidente da Câmara, Severino Cavalcanti — como a desta semana: "Quero a diretoria que fura poço" — tudo está se acumulando numa agressão diária às consciências.

Nada do que tem acontecido é aceitável. Tudo é muito perigoso. Que as pessoas públicas, que vão às ruas pelo voto dos eleitores e representam o cidadão, saibam da gravidade do momento. Não se enganem com o silêncio das ruas. Os momentos de turbulência, às vezes, não dão aviso prévio. A hora é de fazer as instituições funcionarem de forma exemplar, para que se possa confirmar o princípio civilizatório: de que só a democracia tem o remédio para os males que nos afligem.
o globo

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