"O garoto, sentado à calçada com um
grupo de amigos, olhava uma revista
pornográfica. Quando a polícia chegou,
ele achou que estava fazendo algo proibido
e fugiu. Foi morto a tiros. Tinha 16 anos"
Modestamente: a ex-prefeita Marta Suplicy e o governador Geraldo Alckmin deviam ficar inelegíveis por uns bons anos. Impedidos de concorrer a qualquer cargo público, sob acusação de violação escancarada dos direitos humanos.
Eles são responsáveis, cada um a seu modo, por um escândalo silencioso, quase imperceptível: é o calote bilionário contra uma parcela humilde e desprotegida da população. São familiares de presos assassinados no massacre do Carandiru. São vítimas de erro médico num hospital público. São pais cujos filhos foram mortos pela polícia numa batida na favela. Essa gente já ganhou na Justiça o direito a receber indenização do governo ou da prefeitura, mas nem prefeito nem governador se dignam a pagar. São indenizações pequenas, calculadas à base de salários mínimos. Nada que estoure o caixa. E, no entanto, eles não pagam. Por quê?
Em primeiro lugar, porque eles e os antecessores deram tanto calote, mas tanto calote, que hoje a dívida é realmente monumental. O Supremo Tribunal Federal tenta calcular o valor nacional desse débito, que leva o nome de "precatórios alimentares". Já sabe que, entre os estados, São Paulo é o campeão. Deve uns 7 bilhões de reais. Entre as cidades, a prefeitura paulistana lidera, com 3 bilhões. Por isso, sempre que foi cobrada a pagar as dívidas, a ex-prefeita dizia que não tinha dinheiro. O governador idem. (Claro que nem governo nem prefeitura têm dinheiro para pagar essa dívida hoje bilionária, mas não custa perguntar: você se lembra, leitor, de algum prefeito ou governador que tenha deixado de fazer propaganda porque não tinha dinheiro?)
Em segundo lugar, a dívida não é paga porque a massa dos credores não é formada por poderosos e influentes, que pagam lobistas de mira telescópica. É gente humilde, desprotegida, como Marcos Almeida Ferreira, que ficou tetraplégico aos 19 anos quando, no caminho da padaria, foi confundido com um bandido e baleado por um policial. É gente como João Antônio da Silva, que há cinco anos espera receber 65.000 reais pela morte do filho na favela Nova Divinéia. O garoto, sentado à calçada com um grupo de amigos, olhava uma revista pornográfica. Quando a polícia chegou, ele achou que estava fazendo algo proibido e fugiu. Foi morto a tiros. Tinha 16 anos.
A discriminação é contra os pobres mesmo. A massa dos credores de outras dívidas, os chamados "precatórios não-alimentares", normalmente decorrentes da desapropriação de uma casa, de um terreno, de uma fazenda, costuma ser mais abastada. Esses credores têm mais ou menos o mesmo para receber: 7 bilhões do governo e 3 bilhões da prefeitura. Também estão na fila, mas a situação é melhor. A cada ano, recebem um belo reajuste: 6% de juros, 12% de juros compensatórios e correção monetária. É o Brasil desigual: aos abastados que perderam uma propriedade, uma gorda compensação. Aos pobres que perderam a perna ou o filho, o desleixo.
Em tese, a lei existe para proteger o cidadão da arrogância, da violência, do arbítrio dos poderosos. Mas a lei é solenemente ignorada, os cidadãos são olimpicamente ludibriados e os poderosos não sofrem nenhuma punição. Estão violando o que se poderia chamar de Lei de Responsabilidade Social. Diante disso, cassar os direitos políticos de Marta e Alckmin seria exagero?
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