Acho que já passou a época em que não se podia aludir à ignorância do presidente da República ou ao conteúdo asneirento, desastrado ou grosseiro de inúmeras afirmações contidas em seus famosos improvisos ou ao óbvio deslumbramento com a fruição do poder, a ponto de ele haver cedido ao impulso, quiçá compreensível, mas injustificável, cafona e atrasadinho, de "branquificar-se" durante sua ascensão. Em vez do cabelo encarapinhado que lhe atestava a mestiçagem, passou a ostentar melenas sedosas. Foi saudado, enquanto dizia novas besteiras em sua visita à África, como o "primeiro presidente negro" do Brasil, o que, aliás, não é verdade, se se adotar o estranho critério segundo o qual uma pessoa pode ser filha de uma sueca com um zulu, ou seja, exatamente metade branca e metade negra, mas é negra. Acredito que muitos outros presidentes brasileiros foram semelhantemente negros, a começar pelo dr. Fernando Henrique, que dizia isso de si, embora nem sempre em termos muito elegantes. Mas Lula pediu as desculpas lá dele como branco. Enquanto isso, por acaso, eu recebia correspondência de um amigo que faz parte da comissão da ONU que trata da escravidão e ele mencionou a possível existência de 200 milhões (isto mesmo) de cativos no mundo de hoje e o problema recente, há uns dez anos, da escravização de pigmeus da República dos Camarões por bantus, estes, por ironia, muito numerosos entre os escravos que vieram para o Brasil — nada como um dia depois do outro.
Mas não quero voltar a esse atraso de vida que é o homem ainda odiar, matar e se aleijar psicologicamente por causa de raça, não concebo absurdo maior. Ia dizer que não creio que as críticas à ignorância formal do presidente (digo formal porque me refiro à falta de estudo, atividade a que ele parece ter irremovível aversão, tanto assim que, quando pôde, não estudou e até já se vangloriou dessa deficiência em público; informalmente, ele não é nada ignorante, foi muito competente em sua carreira anterior à Presidência) agora sejam vistas como elitismo, palavra usada para anatematizar tudo o que está fora de nosso alcance entender ou nos dá preguiça de aprender. Não têm nada a ver com o fato de ele ser um homem de origem humilde no exercício da Presidência. Esse tipo de argumento para mim já deve ser considerado frescura e fuga da discussão, porque se trata do presidente e acabou-se, ele que se vire. Digo que a frase sobre o brasileiro não saber votar foi cunhada com meu caso em mente, porque, entre muitos outros votos enganados, votei nele também. Mas pelo menos não cola comigo esse negócio de elitismo.
A verdade é que, pelo que vejo, está todo mundo de saco cheio de bravatas, fanfarronadas e gogó. Projeto de governo, com uma exceção amedrontadora ou outra — caso do pobre Rio São Francisco —, não sei de nenhum. Sei de um presidente que já deve estar chegando a 70 viagens pelo mundo e já ficou uns 120 dias fora do país, durante seu governo. Segundo um texto que me mandaram, atribuído, não sei se verazmente, a Joelmir Beting, ele passou 450 dias fora de Brasília, em 777 dias de Presidência. O que ele diz, entremeando as parlapatices, são frases de torcida de futebol e um rosário de bazófias que os fatos negam, desde nosso medo de sair à rua aos maravilhosos empregos criados por um país em crescimento disparado (para os de sempre), eis que, agora mesmo, 1.200 vagas de gari no Rio de Janeiro estão sendo batalhadas por cerca de 300 mil candidatos e ele, por sinal — ho-ho para nós, que pagamos as despesas dele —, não poderia inscrever-se, porque ouvi dizer que se exige segundo grau completo, pois é ocupação qualificada.
Enquanto isso, ele viaja e, uma vez na vida e outra na morte, reúne alguns ministros e anuncia que "cobrou providências". Isso nunca foi administrar ou governar, nem aqui nem no seu invejado Gabão. Ele faz visitas e comparece a atos em que fala e se conduz circensemente. Agora que é branco, rico, bonito, bem aposentado, arrumado na vida, famoso e viajado, parece estar pegando um certo enjôo de povo, esse pessoal mal-informado e majoritariamente malcheiroso que nunca chegou ao lado de lá e, assim, não teve a chance de ver as coisas como verdadeiramente são. E que atrapalha, pois, como é amiúde apontado por ideólogos a ele de alguma maneira vinculados, o país vai bem e o povo é que vai mal, pensamento, aliás, originado de tempos políticos não tão saudosos. Quase todo mundo atrapalha, notadamente também a imprensa, responsável, como de hábito, pelos males da nação. Ele é que não se atrapalha, dizendo, por exemplo, depois da morte, em Alcântara, de 22 técnicos brasileiros, que "há males que vêm para bem". Bem verdade que línguas aleivosas asseveram que ele faz tantos improvisos porque não sabe, ou tem preguiça, de ler o que escrevem para ele, deve ser muito cansativo.
Agora somos de novo culpados, desta vez pelos juros altos. Não mexemos nossos traseiros para pegar juros baixos. Claro, para quem há anos trabalhar se resume a matraquear, não deve ter entrado numa fila a não ser posando e está na boa em que ele está, mais do que nunca alie — perdão, latinistas. É só a gente telefonar para o banco, dizer que não paga juros tosquiadores e pronto. A culpa mais uma vez é nossa. Ele tem razão e minha proposta é fazermos com ele um acerto para o qual tenho certeza de que conto com a anuência de vocês: a gente mexe nossos traseiros para procurar vantagens e ele senta no dele a fim de trabalhar, para variar. E, claro, vamos nos acautelando contra qualquer possível medida provisória sobre nossos traseiros, quem sabe até a instituição do Traseiro Participativo. O Senhor Bom Deus ajude a que ele não baixe normas sobre nossos traseiros, basta o que já vem fazendo com eles desde que assumiu.
O GLOBO
Entrevista:O Estado inteligente
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