Em carta recebida da Presidência da República, o repórter foi convidado a ajudar a "construir o Brasil do futuro". A mesma correspondência foi enviada a outros 49.999 brasileiros. Todos foram instados a visitar um endereço eletrônico (www.presidencia.gov.br/br3t). Ali, digitando-se uma senha individual, as pessoas são apresentadas a um tal "Projeto Brasil 3 Tempos".
O repórter alarmou-se com a súbita responsabilidade acomodada sobre os seus ombros estreitos: "O projeto depende da sua opinião". Com o auxílio de acadêmicos, o governo elaborou um questionário. Coisa ambiciosa. Aborda 50 temas -da política cultural à nanotecnologia. "Com a sua participação, esses temas serão discutidos, formando o alicerce de um processo de gestão estratégica, que permitirá a construção de um futuro melhor", estimula a mensagem.
Embora sensibilizado com tanta deferência, o repórter achou melhor declinar do convite para participar da ambiciosa empreitada governamental. Súbito, lembrou-se de Stefan Zweig. Autor do livro "Brasil, País do Futuro", o escritor austríaco suicidou-se em fevereiro de 42, em Petrópolis (RJ), por não suportar o presente. Observando a sem-vergonhice dos dias que correm, o repórter por vezes também sente as ânsias da morte voluntária.
A colaboração com Gushiken revolveria perigosamente os subterrâneos da psique do repórter. O id poderia receber mal a idéia. Decerto decodificaria as respostas ao questionário do Planalto como evidências da cumplicidade com o governo. Um governo que, por indigno, não merece ajuda. Seria arriscado. Muito arriscado. Arriscadíssimo. Melhor evitar. Não é hora de apressar o encontro com Stefan Zweig.
Nada como o presente para desacreditar o futuro. Enquanto Gushiken, instalado no terceiro andar do Palácio do Planalto, finge construir 2022, Lula, na sala ao lado, e José Dirceu, no pavimento superior, conduzem operações que destroem 2005.
Poder-se-ia imaginar que o "tour-de-farsa" fosse coisa combinada. Lula e Dirceu mergulhariam o país no caos de propósito, só para que Gushiken pudesse erigir dos escombros uma nação novinha em folha, nascida do zero. O mais provável, no entanto, é que Gushiken esteja mesmo planejando um imaginário Brasil das maravilhas, a ser gerido por uma improvável Alice petista.
Às voltas com as contradições de uma gestão convencional, o ex-PT perde-se num ziguezague incompatível com qualquer sonho de futuro. Ao autorizar o chefão da Casa Civil a ajoelhar-se diante de Roberto Jefferson, ao permitir que sussurre súplicas ao pé do ouvido de Anthony Garotinho, o presidente demonstra que governos, assim como escritores e repórteres, também flertam com o suicídio.
Antes de elaborar o questionário que enviou ao repórter e a outros brasileiros mais ilustres, Gushiken realizou uma pesquisa de opinião. Foi coordenada pelo Instituto de Estudos Avançados da USP. Ouviram-se 104 pessoas. Gente qualificada, com nível superior (100%), doutorado (41%), pós-doutorado (5%) e mestrado (12%). Entre os pesquisados, 80% consideraram que, no futuro, o brasileiro exibirá um sentimento de "crescente intolerância à corrupção na vida pública". A despeito da conclusão óbvia, o governo não hesita em recorrer ao cangaço parlamentar para tentar inviabilizar a apuração da roubalheira que lhe corrói as entranhas.
Hoje, o maior inimigo do ex-PT não é mais a elite conservadora. Tampouco é neoliberalismo. Muito menos o mercado financeiro. O principal adversário do ex-PT é, e nisso vai uma extraordinária dose de ironia, o seu próprio passado. O partido virou um boxeador zonzo. Encontra-se nas cordas. Nos raros instantes em que consegue abrir os olhos, percebe que o adversário que o soca impiedosamente tem a mesma cara do velho PT, aquela legenda combativa de outrora, defensora intransigente da ética.
Nada mais trágico para o "anjo" presumido do que acabar confundido com os demônios que sempre combateu. O petismo é vítima das próprias trapaças. O "triunfo" do ex-PT converteu-se na desgraça do PT. O "sucesso" de um matou o outro. Não há projeto de futuro capaz de subsistir a um presente tão promíscuo.
Um novo Brasil, organizado e sério, exigiria respeito ao erário. Mas Lula achou melhor não correr o risco de melhorar o país. Optou pelo arcaísmo de sempre. Preservou a névoa de atraso que recobre o vale-tudo da predação patrimonialista. A covardia cobra agora o preço da desmoralização.
Por todas as razões, o repórter quer distância do mirabolante plano de metas de Gushiken. Mas, levando-se em conta que está contribuindo com a bilheteria do circo -o "Projeto Brasil 3 Tempos" custará à Viúva cerca de R$ 900 mil-, sente-se no direito de dar um palpite gratuito ao companheiro-estrategista.
Aí vai: se não puder ajudar a consertar o presente, caro camarada, é melhor deixar o futuro em paz. No rumo em que as coisas vão, o amanhã terá o incômodo semblante de anteontem. Em 2022, o país terá retrocedido a uma era muito remota. Não haverá mais PT. Pior: não existirá mais Brasil. Restarão apenas uns poucos hominídeos. Entre eles o "homo petebê erectus" e o "homo dirceu sapiens". Travarão renhidas contendas, para decidir quem controlará o último osso e quem ocupará mais espaços na derradeira caverna, um buraco escuro, úmido e fétido.
Folha de S. Paulo
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