A afirmação de que a primeira vítima de uma guerra é a verdade data de mais de um século, e até hoje nenhum conflito a desmentiu. No entanto, ela permanece ambígua. Seus carrascos tanto podem ser os protagonistas do conflito como a mídia, sua principal testemunha. Talvez não seja injusto, em muitos casos, culpar uns e outros.
Raras vezes isso tem sido tão visível quanto no conflito do Iraque. Nele, a verdade não tem sido apenas a primeira baixa: a guerra oficialmente acabou e a coitada continua levando pancada dos dois lados.
Já se falou o suficiente sobre o visível cinismo da Casa Branca. O governo americano tinha comprovadamente razão quando definia Saddam Hussein como um déspota muito pouco esclarecido. Mas até hoje não conseguiu provar por que, num mundo de tantos regimes totalitários nada esclarecidos, alguns deles até cortejados aliados dos EUA, ele teria de ser a bola da vez.
Por outro lado, é inegável que a mídia — não exclusivamente a americana, mas ela de forma mais tristemente flagrante — também tem atropelado a verdade com freqüência de acabrunhar. Durante muito tempo, por ter aceitado sem discutir a idéia de que a invasão do Iraque era resposta adequada e moralmente válida ao morticínio no World Trade Center. Mais recentemente, pela leviandade com que, num esforço para melhorar sua imagem, tem apontado crimes de guerra cometidos por autoridades americanas.
Já fora patético o erro de jornalistas de televisão ao tentar provar a suposta covardia do presidente George W. Bush, evitando ser recrutado para a guerra no Vietnam. Documentos falsos foram exibidos e logo desmentidos. Ficou provado o açodamento leviano da TV — e as suspeitas contra Bush tiveram de ser abandonadas, ainda que pudessem ter fundamento. A pressa, mais uma vez se provou, pode ser a inimiga da verdade.
Por estes dias, nova trapalhada mostrou como o mau jornalismo atropela a boa informação.
Primeiro, a revista “Newsweek” informou que, como parte do tratamento cruel de prisioneiros de guerra — solidamente comprovado em inúmeros casos, com abundante documentação fotográfica (torturador que fotografa a tortura é torturador acima de tudo burro, não?) — exemplares do Alcorão foram jogados em privadas. A repercussão no mundo árabe foi o desastre que se pode imaginar.
Mas a revista cometera erro mortal: não podia provar a autenticidade da denúncia. E foi forçada a se desmentir. Não é deslize perdoável: ele desmoraliza não apenas aquela denúncia, mas todas as revelações sobre tratamento cruel de prisioneiros. A “Newsweek” publicou retratação humilhante.
Dias depois, o “Washington Post”, jornal da mesma empresa que edita a revista, e que lamentara o erro publicamente, informou que a agressão ao Alcorão realmente acontecera. Novamente o governo desmentiu o que foi publicado, e ficou tudo por isso mesmo.
Pelo visto, o jornalismo americano não vive um momento de alto brilho. Mas é simples, pelo menos em tese, definir certos cuidados óbvios. Por exemplo: não há notícia com apuração pela metade. E, quanto mais grave a denúncia, mais sólidas precisam ser as provas. Mais: a certeza moral deve ser apenas um estímulo à busca dos fatos — não uma desculpa para acusar. Por maior que seja a coceira nos dedos ou na garganta. Uma coceira danada, podem crer.
O GLOBO
Entrevista:O Estado inteligente
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