Nos últimos dias, mesmo diante da evidente crise política em que se debate o governo, vários de seus membros mais ilustres, a começar pelo próprio presidente Lula, têm procurado demonstrar uma tranqüilidade que não corresponde à percepção da maioria dos atores políticos e já foi classificada de "autista", tamanha a distância da realidade.
Só houve um momento de irritação no Palácio do Planalto, logo superado pela constatação de que a acusação não produzira qualquer efeito político: foi quando o senador Antonio Carlos Magalhães comparou o atual momento político aos dias que antecederam o suicídio de Getúlio Vargas.
Como se tivessem combinado, ministros de diversas áreas passaram a falar a mesma linguagem política: enaltecer a mobilidade social do Brasil, que permite a um operário chegar à Presidência da República, e exaltar a necessidade de que essa experiência política chegue ao fim assim como começou, em normalidade democrática.
Provavelmente o que gerou essa racionalização tenha sido o comentário do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso de que uma crise institucional está a caminho, tese reforçada no fim da semana pelo governador paulista e provável candidato à Presidência pelo PSDB, Geraldo Alckmin.
De Gushiken a Dirceu, de Aldo Rebelo a Celso Amorim, em conversas privadas ou em público, todos desenvolveram raciocínios políticos semelhantes, como se tivessem combinado. O que se depreende dessa orquestração é que pelo menos o núcleo dirigente do governo, não necessariamente formado apenas por petistas, tem mais preocupação com a estabilidade democrática do que propriamente com as conseqüências das crises políticas. Talvez porque considerem que, apesar das turbulências, dificilmente Lula deixará de ser reeleito.
Talvez quem melhor tenha compreendido a crise de identidade do PT e a mudança de seu comportamento no governo tenha sido Hamilton Garcia, sociólogo e cientista político, professor do Laboratório de Estudo da Sociedade Civil e do Estado/Centro de Ciências do Homem da Universidade Estadual do Norte Fluminense. Na tese que defenderá até setembro na Universidade Federal Fluminense, intitulada "PCB e PT em dois tempos: do Estado à sociedade", na qual traça um paralelo entre as trajetórias radicais destes dois partidos, ele explica a crise de identidade do PT no governo Lula com a crise da sua opção histórica pelo socialismo.
Garcia diz que, absorto na discussão estratégica sobre os caminhos para o socialismo, "o partido refletiu pouco sobre as ações governativas que tomaria no caso de ter de gerir o país em situação normal, ou seja, sem as massas na rua em desafio à ordem burguesa".
Na sua concepção, "o realismo político tardio das eleições de 2002 foi um lance de brilhante oportunismo político com base em idéias não amadurecidas sobre a administração do capitalismo". Isto explicaria, em boa medida, diz Hamilton Garcia, o fato de "os petistas terem se socorrido no pensamento e nos técnicos que antes hostilizavam para gerir seu governo de coalizão". Ele acha que o núcleo dirigente do petismo, "assim como necessitou ser pragmático para não naufragar no primeiro ano de mandato, precisará ser mais criativo no último ano para diferenciar-se com relação ao período de FHC".
Para que isto aconteça, segundo Garcia, o PT, em vez de enveredar pelo caminho socialista que a sua esquerda exige, terá que aprofundar uma "nova formulação estratégica de cunho mais radical-democrático" ligada ao mercado. Se isso não acontecer, ele pensa que o petismo poderá encontrar grandes dificuldades num confronto com o PSDB, "sobretudo em presença de uma nova onda conservadora (ou será populista?) que já se forma no horizonte".
No seu modo de ver a situação política, "a tentativa de semear a crise por meio do ataque aberto à atual direção governamental está fadada ao fracasso pela esquerda, mas pode obter sucesso pela direita". Na hipótese da fragilização da coalizão no governo, "que redunde na tibieza do cumprimento das reformas liberais, ou induza a cúpula petista a trair os compromissos democráticos assumidos na eleição que a consagrou, o que sucederá é o fortalecimento das coalizões conservadoras", prevê Hamilton Garcia.
Para ele, "as forças liberal-conservadoras esperam apenas a chance de retomar o controle das reformas, e a principal bandeira capaz de lhes permitir a revanche, provavelmente, será a da crise do Estado. Por meio da ressuscitação da bandeira do Estado mínimo, via redução dos impostos — questão que deve pressionar a agenda eleitoral deste ano e dominar a de 2006 — espera-se oferecer um caminho alternativo às expectativas populares de crescimento econômico", analisa ele, antevendo a estratégia explicitada na coluna de ontem pelo PFL renovado.
As chances desta iniciativa, ele lembra, são inversamente proporcionais aos patamares efetivos de inclusão que o governo conseguir obter com sua política econômica: quanto maiores forem os índices de crescimento, menores serão as chances dos conservadores voltarem ao governo e vice-versa.
Nesse processo de amadurecimento político, que o ministro Luiz Gushiken já definiu como "prestar contas pelos erros do passado", o PT deixou pelo caminho "aspectos de romantismo" que pareciam inadequados para enfrentar os desafios da vida adulta, o que poderia ser traduzido por pragmatismo, "e isto nada tem em comum com desvios morais — ou pelo menos não deveria ter", ressalta Garcia. Na sua concepção, os petistas entenderam "que as possibilidades objetivas para mudanças revolucionárias no Brasil se tornaram remotas" com o avanço do capitalismo.
o globo
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