Otávio Cabral VEJA
Montagem com fotos de Paulo Vitale e Sergio Dutti/AE |
Jefferson, presidente do PTB: querem varrê-lo para debaixo do tapete |
Em seu esforço para impedir a criação da CPI dos Correios, o Palácio do Planalto apelou para arsenal tradicional do presidencialismo brasileiro: ameaças, cargos e dinheiro. Um recurso em particular, no entanto, chamou atenção: as súplicas dirigidas ao presidente do PTB, o deputado Roberto Jefferson, aquele que diminuiu o estômago mas cujo apetite aumentou. Na segunda-feira à noite, os ministros Aldo Rebelo e José Dirceu foram ao apartamento de Jefferson, na Asa Norte de Brasília, mas o deputado, irritado com os governistas, não os deixou subir. Na manhã do dia seguinte, os dois voltaram a procurar Jefferson, mas de novo não foram autorizados a ir ao apartamento. Na tarde de terça-feira, a empregada de Jefferson, sem saber que os ministros estavam proibidos de subir e com o patrão ocupado tomando banho, inadvertidamente deixou Aldo Rebelo e José Dirceu entrarem no apartamento. Jefferson recebeu-os em sua sala e desfiou um agressivo rosário de reclamações. Disse que estava sendo abandonado pelo governo, que o governo sabia de tudo que ele, Jefferson, vinha fazendo e que, agora, ainda tinha de agüentar calado o discurso de José Genoino, presidente do PT, segundo o qual o governo precisava se empenhar em "requalificar" sua base de apoio.
Num dado momento, Roberto Jefferson dirigiu-se ao ministro José Dirceu e repetiu o que já dissera a um aliado no café-da-manhã daquele dia: "Na cadeira em que eu sentar na CPI, também vão sentar você, o Delúbio e o Silvinho", afirmou. Jefferson estava se referindo ao tesoureiro do PT, Delúbio Soares, e ao secretário-geral do partido, Silvio Pereira. Os dois participaram mais diretamente da distribuição de cargos federais aos aliados. Há duas semanas, a mesma preocupação de que uma CPI séria pudesse pegar "Delúbio e Silvinho" foi externada pelo ministro José Dirceu a um aliado. O fato é que, depois de ouvir tudo o que Jefferson tinha a dizer, Aldo Rebelo e José Dirceu imploraram ao deputado para que retirasse sua assinatura do pedido de CPI e orientasse os outros dezesseis parlamentares do PTB a fazer o mesmo. Encerrado o encontro, Jefferson comentou a postura dos ministros: "Só faltou eles se ajoelharem aos meus pés". Mas por que o governo se agarrou tanto ao PTB de Roberto Jefferson, mais até do que ao aliado de primeira hora, o PL do vice-presidente? O que Roberto Jefferson sabe que tanto apavora o PT?
Ed Ferreira/AE |
EM DUAS FRENTES No Congresso, um grupo de oposicionistas exibe uma faixa em que satiriza a guinada ética do PT, outrora tão cioso de fazer CPIs (acima), e o servidor dos Correios Maurício Marinho, ao depor na Polícia Federal: agora, são duas frentes de investigação |
rafael Nedermeyer/AE |
Já surgiram indícios de que o PT também tinha alguma participação no esquema espúrio dos Correios desvendado pelo jornalista Policarpo Junior, da sucursal de VEJA em Brasília. Segundo confessa candidamente o próprio senador Fernando Bezerra, que vem a ser líder do governo no Congresso, na reportagem que pode ser lida na página 52 desta edição, um indicado seu para os Correios não poderia ser empossado enquanto não fosse concluída uma licitação milionária de interesse do PT na estatal. Também apareceram sinais de que diretores indicados pelo partido em estatais tinham a estranha mania comum de beneficiar um corretor chamado Henrique Brandão. Quem é Brandão? Ora, é um amigão, sócio e generoso contribuinte das campanhas políticas de interesse de Roberto Jefferson – aquele que provocou a genuflexão de dois poderosos ministros do atual governo. Jefferson ficou aborrecido ao ser pressionado por sua própria bancada num jantar na segunda-feira. Seus correligionários pediram explicações sobre a mesada de 400.000 reais que o PTB exigiu da direção do IRB, a estatal de resseguros, da qual eles não tinham conhecimento. Jefferson desmentiu a mesada, mas, para sua irritação, ninguém lhe deu crédito. Não surgiram ainda evidências irrefutáveis que autorizem a afirmação de que setores do PT e do PTB se associaram em esquemas clandestinos nos desvãos do governo. O que existe e é irrefutável é o fato de que a aliança entre os dois partidos, principalmente quando se tenta verificar o que há debaixo do tapete, exibe um vigor e uma solidez que vão muito além dos compromissos programáticos e dos interesses políticos mais evidentes entre as duas agremiações. Por quê?
O Palácio do Planalto foi o artífice do regime de engorda do PTB, que saiu das urnas com 26 deputados e hoje tem 47 – crescimento que, como até as emas do Alvorada sabem, não costuma se materializar à base de argumentos políticos ou ideológicos. Agora, ninguém sabe igualmente quais os argumentos políticos ou ideológicos que convenceram Jefferson a retirar o apoio do PTB à CPI. O certo é que, além de Jefferson, o governo ficou apavorado com a própria criação da CPI. Procurou até o ex-governador Anthony Garotinho, que vinha sendo tratado como inimigo número 1. Entre segunda e quarta-feira, José Dirceu falou seis vezes com Garotinho. "O ministro me suplicava", ironizou o ex-governador. Na última hora, Garotinho tentou extorquir do governo o cancelamento da assinatura de quinze deputados sob sua influência. Mandou o deputado Eduardo Cunha procurar o secretário de Política Econômica, Bernard Appy. Cunha mostrou a Appy as procurações dos quinze deputados autorizando a retirada das assinaturas e pediu o desbloqueio de 350 milhões de reais da privatização do Banerj. Appy resistiu à chantagem. Cunha rasgou, ali mesmo, as quinze procurações.
Ailton de Freitas/Ag. O Globo |
FILA DE PUNIÇÃO O petista Eduardo Suplicy, que chorou ao assinar o pedido de CPI dos Correios: agora, à espera das punições do PT |
A CPI dos Correios foi aprovada com a assinatura de 236 deputados e 52 senadores, dos quais catorze deputados e um senador pertencem ao próprio PT. A última adesão foi a do senador Eduardo Suplicy, que chegou às lágrimas ao anunciar sua decisão e dizer que o governo, fechado nos palácios, não está percebendo a realidade nem sentindo a indignação que se espalha na sociedade – raciocínio semelhante ao exposto até pelo ex-assessor de imprensa do presidente Lula, o jornalista Ricardo Kotscho, em artigo publicado no NoMínimo, um site de notícias e opinião. "Você pega os jornais e não sobra pedra sobre pedra no cenário político, pinta um clima de fim de feira moral, de desesperança, de indignação, de salve-se quem puder, de tudo ao mesmo tempo", escreveu Kotscho. Pois, para se salvar da CPI, o governo tentou de tudo. Anunciou que poderia gastar 773 milhões de reais e chegou a desembolsar 12 milhões para financiar emendas ao Orçamento que viabilizam obras de interesse direto dos deputados em seus feudos eleitorais. Também ameaçou demitir os apadrinhados de parlamentares que apoiassem a CPI e, é claro, prometeu punição aos petistas rebeldes. Tudo, porém, em vão.
A operação abafa do governo foi a maior mobilização política já realizada nos trinta meses de governo petista e incluiu seis ministros e um punhado de aliados. Até João Pedro Stedile, o líder dos sem-terra, entrou no jogo, mas só conseguiu o recuo da deputada Luci Choinacki, do PT catarinense. Os petistas procuraram governadores de oposição, com propostas escancaradamente heterodoxas. Ao governador de Minas Gerais, o tucano Aécio Neves, em troca da retirada da assinatura de deputados mineiros, prometeram que o PT desistiria de criar uma CPI para investigar os investimentos em educação. Aécio não aceitou a barganha.
O discurso do governo apoiou-se em dois pontos. O primeiro é um espanto: dizia que a criação da CPI era "golpismo" das "elites" que não se conformam em ver "um operário na Presidência da República". Esse delírio foi disseminado pelo ministro José Dirceu e pelos deputados Arlindo Chinaglia e Professor Luizinho, o atual e o ex-líder do governo na Câmara. O líder do PT na Câmara, deputado Paulo Rocha, também andou falando coisa parecida. O ministro Aldo Rebelo não usou as mesmas palavras, mas chegou ao alucinado destempero de insinuar que a crise atual é semelhante à de 1954, que levou Getúlio Vargas ao suicídio, e à de 1964, que resultou no golpe militar. Obviamente não é nada disso. O presidente Lula, em viagem ao outro lado do mundo, ficou protegido pela distância entre Brasil e Japão das ondas de choque das trombadas de seus auxiliares diretos no Planalto. Lula jantou com Antonio Palocci em Tóquio na quinta-feira. Tomaram vinho e conversaram as amenidades costumeiras a que se dedicam sempre que se encontram socialmente. Falaram da crise, claro. A avaliação do presidente: é correto lutar para tentar evitar a instalação de CPIs que incomodem o governo. Em sua opinião, se o governo deixasse o processo correr sem lhe oferecer nenhum obstáculo daria a impressão de que já se considerava derrotado. Quanto à CPI em si, Lula acha que ela devia mesmo ser instalada e, agora, precisa funcionar.
Não deixa de ser intrigante a aparente despreocupação do presidente com a CPI e o legítimo pavor de seus genuflexos ministros políticos. Depois de eles falharem em evitar sua instalação, a tática agora parece ser impedir que ela funcione de modo "minimamente competente" – que, como se sabe, é aquele modo que pode pegar Silvinho e Delúbio. O contraste entre a calma do presidente e o alvoroço de Dirceu, Rebelo e Genoino tem duas razões básicas. A primeira é que o regime presidencialista permite ao presidente reinventar seu governo a qualquer momento – por exemplo, trocando todos os ministros. A segunda deriva do fato de que Lula sabe melhor do que ninguém que as denúncias de corrupção e o aproveitamento político delas pela oposição fazem parte do jogo democrático normal. Os que viram "golpismo" e "conspiração das elites" muito provavelmente estão mais preocupados com a manutenção da própria cabeça sobre os ombros do que com a tranqüilidade do presidente Lula. Seria de esperar que, como membros de um governo "operário", eles tivessem absorvido melhor a sabedoria popular. Qualquer brasileiro sabe que, diante de tipos como Roberto Jefferson e Anthony Garotinho, ajoelhou, tem de rezar.
Na semana passada, a Polícia Federal tomou o depoimento de Maurício Marinho, o servidor do vídeo, que voltou a dizer que suas palavras foram apenas "bravatas" e que o maço de 3.000 reais era um adiantamento de uma consultoria que seria feita no futuro. O Ministério Público também já ouviu o deputado Roberto Jefferson, o qual, em seu depoimento, revelou que seus contatos com Marinho foram um pouco mais numerosos do que admitira em seu discurso de defesa na Câmara há duas semanas – e incluíram até dois encontros no prédio dos Correios. Apesar da rapidez das investigações, nada substituiu o trabalho de uma CPI. Nenhuma outra instância, seja a Polícia Federal, seja a Corregedoria da União, seja o Ministério Público, tem a prerrogativa de propor mudanças institucionais com base em suas investigações. Uma CPI tem. A CPI dos Correios pode desvendar o esquema de corrupção do PTB em vários setores do governo e, calcada nisso, sugerir, por exemplo, que se reduza o número de cargos de confiança na esfera federal – uma forma de evitar que legendas fisiológicas abram suas picadas na máquina pública. Só uma CPI pode fazer isso.
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