Entrevista:O Estado inteligente

sábado, maio 21, 2005

Golpista é o PT! por Reinaldo Azevedo


Estava demorando, mas aconteceu. Estava demorando porque viria cedo ou tarde. Estava demorando porque, de verdade, sempre foi um dado da equação. Estava demorando, mas está aí, para todo mundo ver. Estava demorando porque a pregação requer certas precondições, que começam a se revelar. Mas eis o fato: o PT começa a falar em "golpe de Estado", "golpismo", "armação das elites"; "perseguição a um presidente popular", toda aquela linguagem macabra que remete tanto ao passado do Brasil como ao presente da América Latina, notadamente o país que serve de inspiração a Lula: a Venezuela. E, de verdade, bem pesados os fatos, quem está, a exemplo de Chávez, com sede de golpe é o PT. As vivandeiras da hora, mas agora das forças supostamente populares, estão é no partido do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ele próprio o comandante-em-chefe de uma dança política que mimetiza os piores movimentos das forças que desprezam a democracia.

Eu tinha 12 anos, em 1973, quando a novela O Bem Amado, de Dias Gomes, foi ao ar. Odorico Paraguaçu, o prefeito de Sucupira, mandava ele próprio pichar nas paredes "Odorico é ladrão" para ter um pretexto, depois, para perseguir a oposição e empastelar o jornal de Neco Pedreira. Quem se lembra da novela ou do seriado, de 1980, sabe: a obsessão do prefeito era inaugurar um cemitério, mas não morria ninguém na cidade. Otimista, Dias Gomes fez, na versão original, com o que o próprio Odorico estreasse o campo santo. "O feitiço vira-se contra o feiticeiro" era o corolário moral. Na política de verdade, cumpre ficar vigilante porque, infelizmente, nem sempre é assim.

O PT, aquele que se queria o moderno partido das massas, quem diria?, transformou o Brasil na Sucupira de Lula Paraguaçu. O partido, sozinho, sem o concurso de ninguém, sem que a oposição tenha movido uma palha para tanto, esforça-se para arrastar o país para uma crise institucional e é o primeiro, no entanto, que sai acusando a articulação de um "golpe das elites" contra o "presidente metalúrgico".

Em primeiro lugar, elite que é elite está se divertindo com os juros de 19,75% ao ano, sr. Aloizio Mercadante e sr. Saturnino Braga. Em segundo lugar, Lula já não é metalúrgico faz tempo. É um político como qualquer outro — à diferença da grande maioria, aliás, tem uma pensão permanente por sua "contribuição" à causa democrática: nós todos pagamos pela dedicação do "companheiro" à causa. Se é menos lido do que a grande maioria, é o único culpado pela própria preguiça. Em terceiro lugar e mais importante: o truque não cola. Se apeado do poder, o PT só o será por meio das urnas ou de algum outro processo legal e democrático. Mas uma coisa é certa, senhores: no poder não permanecerá se não for por meio das urnas. Nem sai nem fica na base do grito.

É claro que é de impressionar. O PT não enfrenta hoje, e jamais enfrentou, uma crise externa. Ao contrário até: por ora, o cenário não poderia ser mais favorável — vai mudar (ai, Jesus!), mas não mudou. Todas as dificuldades ora vividas foram uma criação genuína (sem trocadilho) do próprio partido. E, quase sempre, têm as digitais de ninguém menos do que o próprio Lula. De posse de seu suposto exclusivismo moral, o partido já chegou ao poder ambicionando pôr de lado o Congresso (quando criou o Conselhão, lembram-se?); explicou-se muito mal (ou, melhor, não se explicou) no caso Waldomiro, mas saiu por aí acusando conspirações; denunciou uma suposta herança maldita, embora tivesse, num primeiro momento, abraçado os mesmos marcos gerais da economia que vigoravam no país para radicalizá-los em seguida; deu início à escalada de uma partidarização do Estado inédita no país; ambicionou fazer o presidente da Câmara na base do dedaço e sonhou governar o país por meio de MPs prenhes de malandragens, como foi o caso da derrotada 232 (a do confisco). E me abstenho aqui, para não me alongar neste particular, de falar da formidável ineficiência gerencial.

Quem criou, até agora, as dificuldades que Lula enfrenta? As oposições? Não! O FMI? Claro que não! Um cenário externo inóspito? Muito ao contrário: ele nos tem sido favorável. Teriam sido o destino ou o clima, como naqueles tempos em que éramos todos vítimas da natureza e do imponderável? Até eles parecem ter dado uma trégua a Lula, oferecendo-lhe, nos dois primeiros anos aos menos, safras gigantescas. Mas, então, qual é o problema? Qual é o seu nome? O nome do problema é Lula; a característica principal do problema é sua inépcia; o risco principal que tal problema carrega consigo é a falta de autoridade.

Convenhamos, senhores: a base aliada do governo em frangalhos, o Congresso parado por falta de agenda, o país em transe com a denúncia de corrupção nos Correios envolvendo um "parceiro" de Lula como Jefferson (a quem deu um "cheque em branco"), risco de CPI no ar... E o chefe da República põe na cabeça o bonezinho do MST, que, ao mesmo tempo, promovia pancadaria na praça dos Três Poderes, quebrando o nariz de policiais? Repita-se: o nome do problema é Lula; a característica principal do problema é sua inépcia; o risco principal que tal problema carrega consigo é a falta de autoridade.

E é este mesmo PT que agora vem pescar em águas turvas. É o mesmo PT que, não contente em já ter uma Câmara conflagrada, em não contar com uma articulação política digna do nome, em estar sendo sistematicamente derrotado por sua própria base; é este mesmo PT que, parecendo achar tudo muito pouco, carrega a crise para dentro do Senado, comandando, como fez Mercadante, a rejeição ao nome de Alexandre de Moraes para o Conselho Nacional de Justiça.

É o mesmo Mercadante que agora vem falar em golpe das elites. É o mesmo Mercadante que estréia numa função que, vá lá, não lhe é assim tão estranha, de vivandeira (ele, sim) do golpismo. Há muito tempo não acredito, os que me lêem sabem, na cultura democrática petista. Seja em 2006, 2010, ou quando for, não aposto dez centavos em que o partido deixará o poder de forma institucionalmente pacífica. Os primeiros sinais estão dados. E cumpre aos democratas ler nesses sinais um tanto de maluquice, é verdade, mas também outro tanto de método.

Maluquice e método

Governar pode ser bom — sobretudo partilhar cargos, suas benesses, honrarias e, como dizer?, fartura material —, mas também deve ser chato pra chuchu. Sobretudo quando não se tem programa, clareza de propósitos, agenda. É visível que Lula se apega aos aspectos fátuos do cargo, mas se aborrece enormemente com a política. Entram aí seu viés autoritário, sua formação sindical, quando tudo era decidido por assembléias manobradas, e sua cultura essencialmente antipolítica. É bom lembrar que Lula começou no movimento sindical justamente em oposição ao PCB, ao Partidão, disputando a eleição no sindicato numa chapa infiltrada pelo SNI. Detestava política e políticos. Detesta ainda hoje. Anos mais tarde, cravou sobre o Parlamento: reúne "300 picaretas".

Essa breve história político-sentimental de Lula explica, sim, muita coisa. Muitos botocudos tiravam uma casquinha de FHC quando ele dizia, e ainda diz, que política é a arte do possível. "Não!", diziam, vamos romper os "limites do possível", como se essa logorréia ou, desculpem o termo, diarréia verbal quisesse dizer alguma coisa. O que há além de "possível"? Seria o primeiro passo que devemos dar à beira do abismo? Tenham paciência! FHC conversava, ouvia, costurava apoios, mas, a rigor, não estabelecia "parcerias", não essa à moda Lula-Jefferson, com ninguém.

O PT cultivou-se e fez-se na base do moralismo abstrato e, de fato, da satanização permanente da política e, se pensarmos bem, da própria democracia. Não custa lembrar que o partido tardou até mesmo a admitir alianças com as outras legendas, que chamava "burguesas". Quando passou a admiti-las, sempre se considerou um intendente moral da parceria. Na sua biografia, estão a não-participação no Colégio Eleitoral, a não-homologação da Constituição de 1988, a não-participação no governo Itamar Franco e a campanha feroz contra o Plano Real. Tudo, em suma, que tivesse cheiro de "política" era tratado a paulada. Como se ele próprio não fizesse, enfim, política!

Maluquice? Sob certo ponto de vista, sim, é maluquice mesmo! Sob outro, bastante importante, é mesmo método. Afinal, não foi assim que chegou ao poder? Ao longo de 25 anos, não conquistou uma espécie de passaporte moral que lhe permitia santificar, num dia, o que condenava no anterior e condenar no seguinte o que antes santificava? Não se fez, dessa forma, o candidato a Moderno Príncipe, disposto a ser o ente de razão que se torna o "novo imperativo categórico" (expressão de Gramsci), capaz de "definir o virtuoso e o criminoso" (Gramsci de novo)"? Pois é, assim vinha se fazendo até havia pouco. Mas a equação desandou.

Cultura democrática

E a equação desandou justamente porque o PT, infelizmente para ele, recebeu das mãos de FHC uma democracia impecável, intocada por qualquer sombra ou tentação de cesarismo. O ex-presidente enfrentou quase uma dezena de crises ao longo de seu governo, e o regime democrático, coisa praticamente única na América Latina, não fez senão se fortalecer nesse período. FHC, afinal de contas, é, de fato, um democrata radical; não aceita flertar com outro regime de governo. Mas o PT, está posto, aceita.

E é por isso que, uma vez no poder, incontinente, resolveu reestruturar o Estado justamente no que ele tinha e tem de defesas democráticas. Atacou as agências reguladoras, tentou encostar o Congresso, aparelhou o Estado, propôs uma reforma sindical e universitária que atrela o trabalho e a universidade ao partido, tentou censurar o jornalismo, quer impor linha justa à cultura, flerta abertamente com a bagunça no campo — enquanto, sempre é bom notar, Palocci se ajoelha no milho do financismo para cumprir as penitências do bom moço do mercadismo. Ele é parte dessa equação, não a sua contradição.

O produto final reflete os ingredientes heterodoxos da receita. Os demais Poderes da República existem, com suas virtudes e seus defeitos. Setores da sociedade dependentes da governança do Estado começam, de fato, a reagir e a demonstrar descontentamento. E, então, vêm os senadores Mercadante e Saturnino, ecoando vozes mais soturnas do Palácio do Planalto, acusar o complô das elites. Por método, não por maluquice apenas, o PT, vê-se, está doidinho para convocar uma reação mais agressiva dos setores prejudicados pelo desgoverno para, então, justificar algum ato de força.

O exemplo mais visível se deu com o boné do MST na cabeça de Lula. Está posto que o movimento hoje não respeita nenhum limite legal. Não se trata de satanizá-lo a partir do que poderia fazer, mas do que faz cotidianamente. Um policial foi seqüestrado, torturado e morto em um acampamento em Pernambuco. É o ápice de uma trajetória de assalto à legalidade. Quando exibe o boné, Lula coonesta os métodos de um movimento com o qual sua obrigação democrática e funcional é apenas negociar. Que sinal está emitindo aos proprietários de terra? Como está tratando a Constituição do país, que ele já não cumpre, diga-se, ao se negar a pôr em prática a MP antiinvasões? O único boné que cabe na cabeça de um chefe de governo e de Estado é o da lei.

Não, senhores! As "elites" não estão contra Lula. Até porque, se existem como uma categoria (o que é falso), o mínimo que se pode dizer é que estão divididas. Uma parte, vá lá, dos ricos brasileiros está satisfeitíssima com o presidente e não consegue imaginar um governo melhor do que esse. É, sim, o PT quem está agindo de forma deliberada para desestabilizar a democracia. Ao mesmo tempo, acusa essa desestabilização e atribui o fato a seus adversários. Espera obter vantagens políticas com isso. Quem acusa um golpe está é flertando com um autogolpe. Não passará!

Lula, sua obra, riscos

Tomara, para o bem do país, que toda essa desordem promovida pelo governo federal acabe refletindo de forma mais clara na popularidade do presidente. À diferença do que possam pensar, não vai aqui nenhuma torcida anti-Lula em particular. Não gosto deste governo, todo mundo sabe. Mas o caso é outro: tudo o de que não precisamos, de agora até 2006, é de um presidente descolado de sua obra, infenso a seu próprio governo. Seria um bom casamento da "fome com a vontade de comer", como a gente diz lá na minha Dois Córregos natal. Apreço pela democracia já não há. Um presidente que fosse popular num país em que impopular fosse a política compõe uma ótima receita de crise.

De resto, é bom considerar que este é um governo bastante chegado a uma pirotecnia. Vão me acusar aqui de estar defendendo prefeitos corruptos de Alagoas. Eu, não. Não sei quem são, onde moram, o que fazem. Mas não posso endossar, nem a democracia pode, que a Polícia Federal, com câmeras de TV, prenda as pessoas em suas casas, expondo-as à execração pública, sem que ao menos sejam conhecidos investigação e processo. Se a apuração justifica as prisões, que sejam feitas, mas sem esse ânimo para o linchamento que, infelizmente, o Ministério da Justiça está estimulando e do qual alguns governistas tanto se orgulham. Não! Definitivamente, isso não é bom. Remete às punições exemplares dos regimes totalitários, àquela deplorável exposição de prisioneiros em estádios de futebol na China. Mais um pouco, a população será estimulada a jogar pedras nos acusados, enquanto cantam as glórias de Lula, o Grande Timoneiro...

Vamos ficar atentos. Vêm muitos sacolejos por aí. O PT, a partir de agora, passará a considerar tentativa de golpe tudo o que atrapalhar seus planos, o que inclui, eventualmente, ser derrotado nas urnas em 2006. De forma deliberada, age para provocar uma reação mais dura dos atingidos por seu desgoverno para que possa, então, à maneira Odorico, justificar eventuais atos de força, venham eles do próprio governo, venham de alguns "movimentos sociais", alguns deles doidinhos para um confronto sangrento que justifique seus delírios finalistas.

Hora da Caravana da Legalidade!
Primeira Leitura (20/05/05)

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