Menos que a economia rural, é a democracia que está em xeque
Aconteceu o esperado. Após 15 dias de marcha, entre Goiânia e Brasília, o Movimento dos Sem-Terra conseguiu emplacar. Mais R$ 400 milhões serão aplicados pelo governo no programa de reforma agrária. Fora as demais promessas.
Governo e manifestantes bem se entenderam, como se fosse jogo combinado. A estratégia radical venceu mais uma. 'Fizemos a nossa parte', orgulhavase o líder do MST, feliz com o resultado das negociações.
Enquanto isso, em Ribeirão Preto, campeava a tristeza. Ali, na Agrishow, o ministro da Agricultura utilizava seu reconhecido carisma tentando apaziguar os produtores. A maior feira de tecnologia agropecuária do País fraquejava, imersa na crise de rentabilidade que afeta o setor. Ninguém se anima a investir.
Entre os agricultores pairava um sentimento de revolta. Eles também tinham feito a sua parte: especialmente entre 2001 e 2004, sua labuta segurou a economia. Da terra brotaram os dólares da balança comercial; no interior se gerou o emprego que faltava nas metrópoles; no campo surgiu a renda que movimentou o comércio.
Mas a bonança findou. Desde a passagem do ano se prenunciavam dificuldades na produção de grãos. Irrompeu a terrível seca no Sul, prosseguiu a queda do dólar. Despencou o mercado internacional, coincidindo aqui dentro com aumento generalizado de custos. Uma somatória de azares derrubou a renda rural.
O sofrimento maior, porém, ainda estava por vir. Nenhum castigo é maior que o desprezo. Asim se sentem hoje - desdenhados - os produtores rurais brasileiros. De venerada a agropecuária passou a esquecida pelo governo. As autoridades demoram a tomar medidas que poderiam amenizar a crise da economia agrária.
Quando os produtores rurais, ansiosos por boas notícias, presenciaram o governo atender, com presteza, ao MST, se indignaram. Vejam algumas razões. Novas 1.300 contratações foram anunciadas pelo Incra. O sistema de defesa sanitária, todavia, por deficiência de 50 veterinários, viu os EUA desistirem de comprar carne bovina.
R$ 100 milhões financiarão agroindústrias nos assentamentos. Os leilões da Conab, entretanto, imprescindíveis para sustentar os preços do arroz, algodão e milho, continuam parados. As cooperativas sulinas estão quebradas, mas as organizações de sem-terra receberam um dinheirão. Por aí vai.
O mais grave, porém, mora aqui. Caindo a renda agregada, compromete-se o uso de tecnologia na agropecuária. Em face de baixos preços, o raciocínio elementar ensina a cortar custos e maneirar a produção. Nada mais sensato.
Não para o governo do PT. remiando a estripulia dos semterra, o presidente Lula anunciou que vai alterar, para cima, os índices mínimos de produtividade no campo. Quer dizer, vai elevar o risco de desapropriação para reforma agrária. Por que isso acontece?
O método de ação política pode explicar. O MST é forte porque luta sem tréguas nem amarras, botando medo no Estado. Pouco lhe importam as regras da democracia representativa ou os ditames do Estado de Direito. Justiceiros, invocam os cânones divinos e arrebentam cercas. Assim, na marra, ganham o respeito do Poder.
Os agricultores, ao contrário, são pacíficos, respeitosos. No máximo, aprenderam a fechar estradas com tratores. Esparsos, sua capacidade de mobilização é pequena. Inexiste organização que os domine, bem como detestam se sujeitar ao mando. Gostam, mesmo, é de trabalhar.
Na Agrishow de Ribeirão Preto, enciumados com as conquistas dos sem-terra, os comterra se questionavam sobre seu futuro. Não apenas na economia, mas também na política. Ora, se nem o trabalho admirado do ministro Rodrigues, tampouco a articulação da bancada ruralista no Congresso Nacional, muito menos a performance econômica do setor, se nada disso valia para, na época do tranco, encontrar conforto da política pública, fazer o quê?
Tornar-se incendiários, certamente, está fora de propósito. Sua índole tranqüila os impede de programar arruaças, à semelhança dos invasores de terras. No máximo, poderiam copiar os franceses, que, na hora do aperto, soltam gansos no centro de Paris.
Imaginem uma passeata ruralista, recheada de tratores, a impedir o trânsito da Avenida Paulista, em São Paulo. Ou, então, vacas tomando sol nas praias de Copacabana. Nem precisa muita gente. Meia dúzia de manifestantes, bem treinados, faz um escarcéu terrível. Os jornalistas adoram.
A causa, entretanto, precisa ser boa, correta, aceita. Esse é o grande dilema que espreme os agricultores. Preconceituosa, a sociedade sempre questiona suas reivindicações. Somase o temor contra os malandros rurais, contumazes em nunca pagar dívidas.
No MST, persiste ainda encantamento com sua luta. Alguns formadores de opinião, ao verem a marcha vermelha, alimentam uma espécie de fantasia retrógrada da revolução, uma vontade de expiar o passado latifundiário. Gera-se, assim, uma benevolência a perdoar o banditismo rural, uma ilusão a referendar o atraso despótico.
Tudo bem que se defenda a agricultura de subsistência contra a produção capitalista. Há quem, ainda hoje, propugne pelo socialismo no campo. Virou moda, entre os radicais, xingar os agronegócios, esquecendose de que a fome e a miséria moram na metrópole. Fazer o quê?
Inaceitável é ver a prevalência do arbítrio sobre a política, da foice sobre o trabalho. Menos que a economia rural, é a democracia brasileira que está em xeque.?
O Estado de S. Paulo
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