O Globo - 06/05/2010
Não é possível definir com exatidão o que aconteceu na noite de terça-feira na Câmara dos Deputados, em Brasília. O governo perdeu o controle de sua base aliada, ou não se empenhou para impedir que fossem aprovados os dois projetos que programam um rombo nas já deficitárias contas previdenciárias? É um fato sabido e notório que a imensa base que o presidente Lula montou em seu redor é muito mais defensiva do que organizada em torno de um projeto de governo.
Cada um dos vários partidos que a compõem (15? 17?) recebe um naco da máquina pública e fica responsável por defender o governo de ataques da oposição, na retórica ou no voto.
Os compromissos programáticos são fluídos e, em véspera de campanha eleitoral, em que a maioria desses mesmos partidos ainda tenta medir para que lado o vento soprará para assumir uma posição em junho, não há como controlar uma base tão heterogênea e descompromissada.
O fato é que, com o auxílio de deputados oposicionistas que agiram exatamente como o PT agia quando na oposição, o governo ficou com um problema sério de ser enfrentado em períodos eleitorais, ainda mais agora que Lula continua tendo dificuldades para fixar na população a imagem de sua candidata.
Segundo um estudo do economista Fabio Giambiagi, especialista no tema previdenciário, que se prepara para lançar na segunda quinzena deste mês, em coautoria com Paulo Tafner (do Ipea, um novo livro sobre a temática previdenciária, que se chamará "Demografia — A ameaça invisível", o aumento da despesa primária do governo central, que corresponde especialmente a benefícios do INSS, pagamento de pessoal e transferências a estados e municípios, foi de 7,5% do PIB a par tir de 1991, podendo chegar a responder por 23,6% do PIB neste último ano do governo Lula.
Essa previsão ainda não contém o rombo programado pela aprovação do reajuste de 7,7% para os aposentados que ganham mais de um salário mínimo e o fim do fator previdenciário no cálculo das aposentadorias.
Nos últimos 15 anos, a variação acumulada real do salário mínimo foi de 109,20%, mas os aposentados que ganham mais de um salário também tiveram ganho real, de 22,05%.
Com esses reajustes acima da inflação, o salário mínimo passou a ser equivalente a 40% do rendimento médio.
O fim do fator previdenciário, se ocorrer, provocará, além do aumento do déficit, uma enxurrada de ações reivindicatórias na Justiça, cujo custo será bilionário.
Para Giambiagi, o que a Câmara aprovou ontem foi "um ato digno das finanças gregas". Se o fim do valor previdenciário for confirmado pelo Senado, diz ele, no dia em que o Brasil deixar de ser "o queridinho dos mercados, quando os EUA subirem os juros daqui a alguns anos, vamos pagar o custo dessa irresponsabilidade, com juros e correção monetária".
Ele considera o fim do fator previdenciário mais danoso, por ser perene e permitir que se tente na Justiça invalidar seus efeitos dos últimos dez anos, quando proporcionou uma economia de cerca de R$ 10 bilhões aos cofres públicos, do que o aumento de 7,7% dos aposentados, que é pontual.
Entre as aberrações que estão sendo aprovadas antes que comece a campanha propriamente dita não está, certamente, a alteração de dois dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal propostos pelo senador Tasso Jereissati.
O consultor técnico do Senado, economista José Roberto R. Afonso, um dos "pais" da LRF, participou também dessas alterações, e ninguém melhor do que ele para atestar as vantagens da mudança proposta.
Em uma nota técnica, ele garante que ela "se presta a aperfeiçoar e reforçar a LRF, focada em estimular os investimentos do setor público, seja através de parcerias entre empresas estatais e privadas, seja diretamente pelos governos, no caso dos projetos de investimentos em modernização de gestão".
José Roberto Afonso lembra que, quando a LRF foi feita, não havia muitas parcerias entre setor público e privado, e a mudança no artigo 40 a aperfeiçoa.
Para dar um exemplo atual, o economista lembra que a redação da lei deixa dúvidas que podem impedir um banco como o BNDES de conceder financiamento a uma empresa que tenha participação de uma estatal, ainda que minoritária (por exemplo, a da concessionária de Belo Monte), recebendo garantias da empresa controladora (por exemplo, a Eletrobrás).
Aliás, foi o próprio presidente do BNDES, Luciano Coutinho, quem pediu apoio do Senado para mudanças na lei que permitissem novos investimentos.
Quanto à alteração no artigo 64 da LRF, José Roberto Afonso lembra que o senador Tasso Jereissati apenas propõe que seja dado aos estados o mesmo tratamento já dispensado pela LRF aos municípios.
"Assim, a proposta amplia a abrangência do apoio federal para iniciativas de modernização da gestão, que não deve se limitar apenas à administração da receita, como também alcançar a racionalização do gasto público, sobretudo nas áreas sociais".
A mudança não é para financiar qualquer investimento, nada poderá ir para obras, observa Afonso.
Ele ressalta na nota técnica que "não faz sentido que o governo estadual ou municipal que pouco arrecada, ou perde receita, de um lado, ou tenha excesso de gasto com pessoal ou com dívidas, de outro, deixe de receber apoio financeiro para investir em ações que o levariam justamente a melhorar a receita e a controlar gastos, enquanto tal suporte é permitido aos governos já com as finanças equilibradas e sadias.
Entrevista:O Estado inteligente
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