O GLOBO - 21/05/10
Está mais uma vez nas mãos do Judiciário o aperfeiçoamento de nosso sistema eleitoral, e desta vez a "judicialização" da política se dará por culpa expressa do corporativismo dos congressistas, que deturparam o projeto de lei da Ficha Limpa o mais que puderam, até o último minuto de votação no Senado
O "aperfeiçoamento" final ocorreu apenas no texto, a chamada emenda de redação, segundo a explicação oficial, mas na verdade representa uma tentativa derradeira de distorcer o espírito da lei.
Em busca de "harmonia estilística", o senador Francisco Dornelles alterou os tempos verbais em alguns artigos da lei, de maneira que as novas regras, que seriam aplicadas aos políticos que "tenham sido condenados", ficaram valendo apenas para aqueles "que forem condenados".
Seria muita ingenuidade imaginar que o senador Dornelles, uma das últimas raposas políticas em atuação no Congresso, estivesse preocupado com o estilo legislativo do projeto.
A partir dessas mudanças verbais, abriu-se uma grande discussão jurídica que pode retardar a entrada em vigor da nova lei e, mais que isso, liberar os poucos "fichas-sujas" que eram alcançados por ela da maneira como foi aprovada na Câmara.
Segundo pesquisa da ONG Voto Consciente, apenas cerca de 10% dos atuais parlamentares estariam inelegíveis com a mudança do alcance da lei, de primeira para a segunda instância (condenação por colegiado).
Mesmo assim, já era considerada um avanço da cidadania em relação às disposições em vigor, que exigem condenação em última instância, o chamado "trânsito em julgado", para tornar inelegível um candidato.
A repercussão da lei nos estados e municípios também seria outro benefício conseguido, com o impedimento de vários deputados, vereadores e prefeitos de disputar a reeleição, além de antigos políticos, que não poderiam retornar à vida pública.
A questão é mais grave por que, apesar da modificação no Senado, a lei não retornou à Câmara e foi diretamente para a sanção presidencial.
Esse procedimento, na visão do senador Demóstenes Torres, relator do projeto e favorável a ele, demonstra que não houve alteração de conteúdo no projeto que saiu da Câmara e, portanto, continuam inelegíveis todos aqueles que já estão condenados.
A questão é que essa interpretação jurídica do espírito da lei não resiste à "interpretação gramatical", como já advertiu o presidente do TSE, ministro do Supremo Ricardo Lewandowski, para quem, pela simples leitura do projeto aprovado no Senado, as restrições só atingem os que forem condenados a partir da vigência da lei.
Essa é uma diferença que vale, por exemplo, a elegibilidade de um Paulo Maluf, para pegarmos um efeito simbólico da nova legislação.
Já há deputados, entre eles o líder do PSOL, Chico Alencar, que defendem que a Mesa da Câmara deve definir como nula a mudança realizada no Senado, fazendo retornar a redação original.
Mesmo aqueles políticos que admitem que a alteração na redação modificou também o sentido da legislação defendem que a lei não pode retroagir para prejudicar ninguém.
Além da interpretação de que a mudança prejudica, sim, a sociedade como um todo para defender a corporação política, existe um fato: o que se aprovou não é uma mudança na legislação atual, mas novas exigências para o acesso à legenda partidária para concorrer às eleições.
O que leva a outra questão em debate, sobre a vigência da lei. O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, defende a imediata validade da legislação, já para esta eleição, embora o artigo 16 da Constituição diga que qualquer alteração nas regras do processo eleitoral tem que ser aprovada um ano antes do pleito.
Caberá ao TSE definir quando começa o "processo eleitoral". Até hoje, toda legislação eleitoral tinha que ser aprovada até setembro do ano anterior à eleição, mas o Tribunal pode definir que o "processo eleitoral" só começa após o registro dos candidatos, cujo prazo final é o começo de julho.
Há também a possibilidade de a nova lei ser interpretada não como parte do processo eleitoral, mas uma "norma material", o que permitiria sua aplicação ainda este ano, e não apenas a partir da eleição municipal de 2012, como querem muitos.
Todas essas manobras protelatórias só fazem tornar mais verdadeira a frase do deputado Edmar Moreira, hoje PR, que ficou conhecido como o "homem do castelo", que tinha certeza de que seria absolvido por seus pares, como realmente foi, porque "o Parlamento sofre do vício insanável da amizade".
Impossível não lembrar Tancredi em Il Gattopardo de Tomaso di Lampedusa: "É preciso mudar, para tudo continuar como está".
O clima de vale-tudo está tomando conta da chamada pré-campanha eleitoral, e está se refletindo na propaganda gratuita de televisão dos partidos políticos.
Ontem foi a campanha do DEM que foi retirada do ar por fazer propaganda da candidatura do tucano José Serra, o que prenuncia novos atritos com as campanhas do PSDB e do PPS nos próximos dias, a exemplo do que acontec eu com apropaganda partidária do PT, punida pela Justiça Eleitoral.
A propaganda antecipada da candidata Dilma Rousseff também foi alvo de parecer da vice-procuradoraeleitoral Sandra Cureau, que está pedindo uma multa maior para o presidente Lula, para a candidata oficial e para vários dirigentes sindicais por terem feito propaganda eleitoral proibida em ato do sindicato de São Bernardo do Campo.
O jogo eleitoral está parecendo aquelas partidas de futebol em que o juiz não se impõe no início do jogo, deixando faltas sérias se sucederem, e depois não consegue mais controlar os jogadores.
Nesses casos, alguns juízes tentam organizar a bagunça expulsando jogadores.