A reincidência do vice-presidente José Alencar na defesa da bomba
atômica como arma de dissuasão, garantidora da paz, coloca uma questão
política importante na discussão internacional sobre o programa
nuclear iraniano e a posição do Brasil de negociador de um acordo que
formalmente almeja recolocar o Irã nos trilhos institucionais, mas que
na prática apenas lhe permite ganhar tempo para que continue com seu
programa longe da supervisão dos organismos internacionais e a salvo
das sanções da ONU.
Não se deve considerar uma mera irrelevância o repetido comentário de
Alencar, a não ser que se queira que o governo brasileiro como
instituição não seja responsabilizado por suas palavras e atos.
É sabido que há setores dentro do governo que avaliam como um erro
estratégico a política que desaguou na assinatura pelo Brasil do
Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), em 1997, no
primeiro governo de Fernando Henrique.
E nesse raciocínio político está a raiz do atual confronto do Brasil
com os cinco países com poder de veto no Conselho de Segurança da ONU,
especialmente os Estados Unidos.
O embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, que até pouco tempo era o
segundo homem do Itamaraty, e hoje é ministro da Secretaria de
Assuntos Estratégicos, responsável portanto por prever as ações que
levarão o país ao desenvolvimento no longo prazo, considera que o
Brasil usou o pretexto de uma aliança estratégica com a Argentina para
aderir a todas as iniciativas americanas, especialmente na área
militar.
Nessa visão geopolítica está resumida a diretriz da atual política
externa brasileira.
O que na ocasião foi considerado pelo Itamaraty um gesto de
preservação de nossa liderança regional, ao não permitir que a
desconfiança dos argentinos sobre nossas intenções nucleares, que
foram verdadeiras na época dos governos militares, gerasse um ambiente
de tensão política, hoje, pelo mesmo Itamaraty, é visto como uma
capitulação diante do poder hegemônico dos Estados Unidos.
Já na campanha presidencial de 2002, Lula provocou grande polêmica
quando criticou a adesão do Brasil ao Tratado de Não Proliferação de
Armas Nucleares, e teve que voltar atrás.
O tratado vigora desde 1970, veta pesquisas para a produção de bombas
atômicas, e foi assinado por 187 dos 190 países da ONU, mas ratificado
por menos da metade.
O governo brasileiro de maneira geral, através dos ministros ligados à
área, em especial o Itamaraty, e o próprio presidente Lula em diversas
ocasiões, defendem a tese de que o TNP não é cumprido, pois não há
movimentos realmente concretos pelo desarmamento nuclear.
Os recentes acordos do governo Barack Obama com a Rússia sobre ogivas
nucleares não são levados na devida conta pelo governo brasileiro.
Embora a tese oficial da diplomacia brasileira seja de que é preciso
desarmar todos, é um pensamento comum entre as autoridades brasileiras
que, se alguns países podem ter a bomba atômica, como Paquistão e
Israel, outros deveriam ser acolhidos no clube nuclear.
Ou que o verdadeiro problema do Oriente Médio é que Israel tem a bomba
atômica, o que justificaria a decisão do Irã de também ir atrás do
desenvolvimento de armas nucleares como fator de "dissuasão", como o
vice-presidente quer demonstrar.
Quando era o todo poderoso chefe do Gabinete Civil do governo Lula,
José Dirceu defendia abertamente a ideia de que a bomba atômica era
uma arma política que faria falta ao Brasil no confronto
internacional, e destacava que dos BRICs (Brasil, Rússia, Índia e
China), o único que não tinha a bomba era o Brasil.
Essa maneira de pensar a geopolítica mundial, e mais o convencimento,
com base na realidade do mundo atual, de que está havendo uma mudança
de paradigmas, e que os países emergentes assumirão o comando político
do novo mundo multipolar, na mesma proporção em que suas economias
estão se destacando em relação às da Europa, Estados Unidos e Japão (o
G3), pode ter levado o governo brasileiro a dar um passo maior que
suas pernas.
A posição da China era a grande esperança do governo brasileiro. Mas,
até o momento, não há indicação de que a China se colocará contra os
demais países do Conselho de Segurança da ONU.
Ao contrário, o governo chinês assinou a nova proposta de sanções
contra o Irã, embora tenha ressaltado que as aprovava porque elas eram
direcionadas contra o programa nuclear iraniano, e não contra "o povo"
iraniano.
É sintomático que o governo chinês tenha mais cautela do que o do
Brasil ou da Turquia, quando se trata de uma confrontação definitiva
com as potências ocidentais.
A China é realmente a grande potência econômica no mundo atual e joga
um papel fundamental no equilíbrio mundial.
Talvez por isso não tenha tanta necessidade de mostrar sua força, nem
interesse em se confrontar com os Estados Unidos.
O aiatolá Ali Khamenei, líder religioso supremo do Irã, deu o toque de
contraposição aos Estados Unidos quando recebeu o presidente Lula,
destacando a altivez com que o governo brasileiro tem enfrentado a
posição americana na disputa do programa nuclear iraniano.
Colocar a intermediação do governo do Brasil nesses termos só foi
possível com a aquiescência da diplomacia brasileira.
Oficialmente, em todo esse processo de negociação sobre o programa
nuclear iraniano, o governo brasileiro tem ressaltado o apoio ao uso
pacífico da energia nuclear.
Essa postura deveria comprometêlo, na intermediação com o Irã, a
encaminhar as conversações no sentido de incluir seu programa sob
observação e supervisão da Agência Internacional de Energia Atômica
(AIEA).
Mas aí Amorim diz que essa questão é parte da soberania de cada país,
assim como o governo brasileiro considera indevidas as pressões para
que o Brasil assine o protocolo adicional do TNP, que amplia a
fiscalização da AIEA.
O que gera desconfiança sobre as reais intenções do governo brasileiro.