O Estado de S.Paulo 16/05/10
Peço desculpas pelo economês, mas ele é indispensável para chegar aonde quero com este artigo: o próximo governo não poderá ser um governo de simples continuidade, pois ela não nos levará muito longe, certamente não a tão longe quanto podemos chegar. E aqui falo de continuidade em relação aos governos de Lula e Fernando Henrique Cardoso, ambos. Temos, portanto, difíceis escolhas políticas a fazer depois de 2010.
Nos últimos dez anos consolidou-se um padrão de política macroeconômica com três pernas na área fiscal e duas na área monetário-cambial. As três pernas fiscais são: meta de superávit primário (receitas menos despesas, excluindo juros) alta o suficiente para impedir o descontrole da dívida pública (o governo federal controla a sua meta diretamente e a dos demais membros da Federação, indiretamente); gastos correntes crescendo mais que o PIB; e carga tributária elevada para cobrir o crescimento dos gastos correntes e, ao mesmo tempo, assegurar o cumprimento das metas de superávit primário e o controle da dinâmica da dívida pública. Na área monetária, as duas pernas são os regimes de metas de inflação e câmbio flutuante, pernas que seriam frouxas sem a companhia das pernas fiscais.
Filha do governo FHC, essa política recebeu duas contribuições do governo Lula. Uma, positiva, consistiu em aproveitar os instrumentos disponíveis e o ótimo ambiente externo de 2003 a 2007 para colocar a dívida pública, a inflação e os juros em trajetória declinante. A outra, negativa, consistiu em pisar no acelerador do gasto corrente, dirigindo para esse tipo de despesa 85% do ganho fiscal gerado pelo crescimento da arrecadação e pela diminuição da despesa com pagamento de juros. Além disso, Lula contratou despesas adicionais com pessoal cujo impacto pleno ainda virá.
Até aqui a continuidade dessa política macroeconômica rendeu bons frutos ao País: consolidação da estabilidade econômica com crescimento razoável e maior capacidade de atender às demandas sociais de uma sociedade com muita pobreza e enorme desigualdade. Os pobres, 30% da população no início dos anos 90, passaram a representar menos de 20% nos anos recentes.
Ninguém sensato deseja mudanças nos regimes monetário e cambial. Mas é preciso reconhecer que na área fiscal estamos com os pés trocados e corremos o risco de tropeçar mais à frente.
Os gastos correntes do governo federal têm crescido sistematicamente acima do PIB. Passaram de 14% em 1991 para 22% do PIB em 2009. No mesmo período, a carga tributária deu um salto de aproximadamente 25% para 36% do PIB, um aumento de 11 pontos de porcentagem em menos de 20 anos, fenômeno quase sem paralelo no mundo. Hoje o Brasil tem um nível de carga tributária anômalo para países de renda média, como ainda somos. Cresceu a fatia da União no bolo da arrecadação e aumentou o peso dos tributos em cascata, ruins para a economia e injustos socialmente. Já os investimentos do governo federal não superaram os 2% do PIB no mesmo período. Estados e municípios aumentaram seus investimentos nesses anos, mas não compensaram a queda drástica do investimento público federal em relação ao observado em períodos anteriores.
A atrofia do investimento e a expansão do gasto corrente do setor público se refletem no conjunto da economia. Nota recente da MB Associados mostra que o investimento agregado respondeu por apenas 13% do crescimento na presente década (2000-2010). Já o consumo do governo foi responsável por 20% do crescimento observado, cabendo 70% ao consumo das famílias, estimulado pelo aumento das transferências governamentais (benefícios previdenciários e assistenciais, grandes itens do gasto corrente) e pelo empurrão oficial ao crédito ao consumidor (crédito consignado, "proatividade" dos bancos públicos) no governo Lula. Não é preciso ser economista para saber que essas tendências não são sustentáveis: estamos consumindo demais, poupando e investindo de menos. Cedo ou tarde, isso termina em mais inflação e/ou em crise das contas externas.
Não será fácil mudar a trajetória dessas variáveis. O padrão a que me referi de início tem implícito um acordo social e político. Será necessário fazer escolhas e contrariar interesses. Embora as mudanças possam ser feitas gradualmente, elas têm de começar desde o início do próximo governo. A principal delas consiste em limitar o crescimento do gasto corrente. Ao contrário do que fez o governo Lula, trata-se de pisar no breque, e não no acelerador, fazendo o gasto corrente crescer abaixo, e não acima do PIB e, nele, privilegiando o que há de mais importante: educação e saúde. Só assim será possível aumentar o investimento público e/ou reduzir a carga tributária, sem pôr em risco a "responsabilidade fiscal". Uma saída politicamente atraente é dizer: "Bastam cortes na máquina do governo." Atraente, mas insuficiente: os benefícios previdenciários respondem por quase metade do aumento do gasto corrente do governo federal desde 1991. Tal constatação nos força a repensar a política de aumentos reais do salário mínimo, que remonta a 1995, e recoloca sobre a mesa a reforma da Previdência, à luz do aumento da proporção de idosos nos anos vindouros. O Brasil já gasta com a Previdência mais que o dobro do que gasta com educação, um absurdo.
O ambiente político não é favorável a reformas e ajustes no nível e na composição do gasto público. Desde a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal, lá se vão dez anos, não houve uma só medida aprovada no Congresso, com exceção parcial da reforma da Previdência do setor público, em 2003, que visasse a limitar o crescimento do gasto público corrente. A tentativa do ex-ministro Palocci de limitá-lo legalmente foi bombardeada ainda no Executivo, sob o fogo cerrado da ministra Dilma, então chefe da Casa Civil.
Nada trivial é a missão política que o próximo presidente da República, homem ou mulher, tem pela frente.
DIRETOR EXECUTIVO DO IFHC, É MEMBRO DO GACINT DA USP