MAÍLSON DA NÓBREGA E FELIPE SALTO
O Estado de S. Paulo - 17/05/2010 |
Entre a segunda metade dos anos 1980 e os anos 2000, o Brasil deu passos vigorosos na construção de instituições fiscais modernas e sólidas. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) constituiu o coroamento dessa trajetória. Hoje considerada um padrão a ser seguido por outros países, a LRF - cujos dez anos acabam de ser comemorados - tem resistido às tentativas de eliminação de suas amarras. O PT, que votou contra o projeto e tentou derrubar a lei no Supremo, acabou por adotar suas regras. Embora tenha abraçado os princípios de responsabilidade fiscal que abominava, o governo do PT adotou nos últimos anos sucessivas ações tendentes a piorar o regime fiscal, ainda que sem agredir a LRF. A crise financeira mundial funcionou como uma espécie de senha para o aprofundamento de gastos que haviam sido criados antes dela. O governo as justificou como ações anticíclicas típicas dos períodos de contração do consumo privado e do investimento. A classificação é indevida. Gastos anticíclicos são os temporários, que podem ser suspensos após a exaustão da crise. A partir do ano passado, diante da iminência de não cumprir metas fiscais, o que poderia afetar negativamente a credibilidade, o governo começou a lançar mão de artifícios para obscurecer os excessos, numa contabilidade criativa sem paralelo nestes anos de responsabilidade fiscal. Foi abatido do superávit primário um volume de gastos equivalente a 0,45 ponto porcentual do PIB. A meta de 2,5% do PIB foi cumprida com um esforço fiscal de apenas 2,05% do PIB. Agora, no Projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) para 2011, o Executivo propõe que o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) seja simplesmente descontado sem limites, o que significa completa deturpação do conceito de meta fiscal. Apenas a título ilustrativo, suponha que o governo vença suas deficiências gerenciais e gaste, com o PAC, 3,3% do PIB em 2011, o equivalente à meta do superávit primário para o exercício. Isso significa que um esforço efetivo nulo permitiria ao governo "cumprir" a meta anual. Nos últimos dias, o Ministério do Planejamento disse que enviará projeto de lei modificando o PLDO e incluindo um limite para os referidos gastos. Recomendável, ainda que insuficiente, já que os abatimentos continuariam a valer. Desse modo, a prudência fiscal vai para o brejo. O governo passou a adotar medidas que, na prática, reinstituem a malsinada "conta de movimento" do Banco Central (BC) no Banco do Brasil, a qual permitia às duas instituições prover crédito subsidiado sem limite, à custa da elevação do endividamento público, sem transparência e longe do escrutínio do Congresso. É o que está acontecendo com o suprimento generoso de recursos do Tesouro a instituições oficiais de crédito, em especial ao BNDES. A dívida bruta aumenta, mas o valor dos aportes do Tesouro ao BNDES é deduzido. Por aí as autoridades econômicas podem expandir a dívida pública a seu bel-prazer, sem se preocuparem, dado que não há impactos na dívida líquida. A manobra já começa a ser detectada, contudo, em grau crescente pelos que analisam a dinâmica fiscal. Já não dá para esconder que a dívida bruta do governo geral tem assumido patamares cada vez mais elevados, tendo passado de 56,4% do PIB, em novembro de 2008, para 64,7% do PIB, em outubro de 2009. Ainda que mais recentemente os patamares tenham melhorado, por conta da redução das operações compromissadas - conduzindo o endividamento bruto a 60,4% do PIB, em março - e pelo efeito benéfico do crescimento do PIB sobre os indicadores fiscais, os movimentos contínuos de concessão de crédito devem manter a dívida bruta pressionada. A dívida líquida segue aparentemente sob controle, mas a expansão da dívida bruta não mente. A situação está ficando periclitante - não tanto o cenário no curto prazo, que será auxiliado pela recuperação da atividade, mas sim sob a ótica dos efeitos que produzirá no médio prazo. Está prevista emissão adicional de títulos do Tesouro em favor do BNDES de mais R$ 80 bilhões, mesmo com o processo de recuperação econômica ocorrendo a todo vapor. A mistura da contabilidade criativa com a alegre expansão da dívida do Tesouro via operações com o BNDES cria dois níveis de preocupação. Primeiro, em relação à piora do regime fiscal, associada à deterioração dos princípios de responsabilidade fiscal, que pode vir a nos custar caro no futuro, com a piora das avaliações sobre nossas condições de solvência. Em segundo lugar, preocupa a expansão imoderada do endividamento bruto. Ambos os movimentos criam uma situação esquizofrênica. Numa ponta, um BC atento aos riscos de descontrole inflacionário aumenta a taxa de juros. Na outra, a equipe econômica adota um expansionismo fiscal injustificado, o que atiça a demanda já excessiva. Chegou a hora de pôr fim à complacência em relação à piora da situação fiscal do País. O contingenciamento de gastos discricionários da ordem de R$ 10 bilhões, ainda que modesto e pouco efetivo para desaquecer a demanda, mostra que o governo começou a se preocupar. Antes tarde do que nunca. |