O Estado de S.Paulo - 22/05/10
Se a alteração na redação não muda o conteúdo do projeto Ficha Limpa, por que na última hora o Senado resolveu modificar o texto aprovado na Câmara?
Por mero apreço à boa escrita não valeria o ensejo de suscitar uma celeuma que suas excelências, experientes, certamente já previam.
"Harmonia gramatical" não é argumento robusto.
Se havia o mínimo risco de que a mudança do tempo do verbo em relação aos abrangidos pela lei fosse interpretada como um ato deliberado para postergar a aplicação das novas regras e esse não era o propósito, que se deixasse a gramática de lado.
Por muito menos se assassina o português (o idioma, bem entendido) todos os dias.
Ao definir a condição de inelegibilidade a emenda trocou a expressão "tenham sido" para "os que forem" condenados em decisão transitada em julgado ou por órgão judicial colegiado.
O relator do projeto na Comissão de Constituição e Justiça, senador Demóstenes Torres, o autor das emendas de redação, senador Francisco Dornelles, e o Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, que apresentou a proposta de iniciativa popular, são de opinião de que a alteração do texto não modifica o mérito.
Já o relator do projeto na CCJ da Câmara, José Eduardo Cardoso, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ricardo Lewandowski, juristas e parlamentares compartilham do entendimento de que a nova redação remete a aplicação da lei para o futuro.
No tocante a linguagem, prevalece a ambiguidade.
O senador Demóstenes Torres argumenta que a correção visava a deixar claro que a nova regra não atinge os casos encerrados, mas alcança os processos em andamento.
Ocorre que a impossibilidade de se aplicar uma lei em caráter retroativo já é norma estabelecida.
Ao falar no futuro não há como não se reconhecer que o texto final enfraqueceu o espírito da demanda social que resultou na aprovação da lei e fortaleceu os que a aprovaram por oportunismo, confiando no terceiro tempo na Justiça.
E aqui voltamos à questão inicial: se a mudança na redação não alterou o mérito do projeto Ficha Limpa, se todos os seus defensores estão convictos de que foi feito um trabalho sólido, celebrado como um encontro do Parlamento com a sociedade por que o Senado não deixou o texto como estava?
Carimbo. Na política vale mais a versão que o fato.
Tenha tido ou não a intenção de facilitar a vida dos colegas com sua polêmica emenda ao projeto Ficha Limpa, o senador Francisco Dornelles ficou marcado.
Caso esteja mesmo cotado para vice na chapa de José Serra - e essa hipótese não tenha sido aventada apenas para tirar Aécio Neves de cena durante um período estratégico - é de se conferir se o PSDB banca o risco de escolher um vice sob contestação em tema tão sensível ao eleitorado mais informado.
Racional. Em questão de dias, o líder do governo no Senado, Romero Jucá, desistiu de confrontar o projeto Ficha Limpa e de tentar adiar a votação do reajuste dos aposentados para livrar o presidente Lula do ônus da decisão sobre o veto.
Na segunda-feira viu que pregava no deserto e avisou aos liderados: "Não vou segurar essa bomba sozinho."
Carapuça. O vídeo vetado pela campanha do PT na sabatina dos três pré-candidatos na Confederação Nacional dos Municípios era um relato de fatos antigos como a Sé de Braga.
A peregrinação dos prefeitos pela capital em busca de recursos, os percalços impostos pela burocracia, atrasos no repasse de verbas.
Invenção do governo Lula? Só em cabeças disponíveis para quaisquer carapuças.
Por elas, a fundação da TV Globo em 1965 deve ter sido premeditada para fazer coincidir o aniversário de 45 anos da emissora com a eleição presidencial de 2010 em que a oposição concorre por partido registrado sob o número 45.