O Globo
É a segunda vitória política do presidente americano Barack Obama em poucos meses. Ele conseguiu aprovar a nova regulamentação do mercado financeiro no Senado. Ainda há divergências: com os 39 senadores que votaram contra, com o texto da lei aprovada na Câmara, com especialistas que temem a redução da oferta de crédito
Como toda regulação, essa foi desenhada olhando para trás. Por isso, há o temor de alguns de que ela seja excessivamente rígida e impeça a formação da liquidez e o dinamismo do mercado de crédito americano, uma das forças daquela economia.
O fato é que a crise exibiu um cenário espantoso de falhas regulatórias. Havia segmentos do mercado sem qualquer supervisão, mas que estavam conectados a outros que eram fiscalizados.
Quando quebraram, o governo se viu obrigado a salvar todos, fiscalizados ou não. A regulação e fiscalização nos Estados Unidos são balcanizadas, divididas em vários órgãos e instâncias diferentes. A síndrome do "grande demais para quebrar" (too big to fail) tem dado às instituições financeiras o melhor dos mundos: na abundância, embolsam gordos lucros; na crise, pedem socorro ao Tesouro.
A nova lei aprovada por 59 senadores terá que ser conciliada com a versão aprovada na Câmara, antes de ser enviada à sanção do presidente Obama. Dela, constam: um conselho de reguladores do risco sistêmico, que será criado, tentará detectar a formação de bolhas e a excessiva concentração do risco; uma nova divisão no Fed, o banco central americano, para a proteção dos consumidores dos serviços financeiros, coibindo práticas abusivas no mercado de crédito; mais poder ao Fed para supervisionar as empresas financeiras; poder aos reguladores para fiscalizar o mercado derivativo, exigindo maior transparência nos contratos negociados em todos os mercados para evitar a repetição da especulação excessiva que levou à crise de 2008.
O jornal "The Wall Street Journal" ponderou que muitos críticos da nova legislação estão achando que o governo está reagindo de forma exagerada e regulando excessivamente o mercado, indo ao extremo oposto que gerou a crise.
"Eles (os críticos) temem que as medidas possam comprimir o fluxo de capitais na economia dos Estados Unidos", registrou o jornal. Alguns senadores republicanos dizem que a consequência óbvia é a contração do mercado de crédito.
Isso pode sim acontecer, já que se reduz a alavancagem e a possibilidade de criação dos veículos financeiros que alimentaram a bolha de crédito no mercado imobiliário, gerando o mercado de dívida duvidosa, o subprime. Essa contração do crédito reduz o combustível para a recuperação econômica. Os defensores da iniciativa acham que assim o mercado ficará mais protegido e mais forte.
Os críticos acham que ele ficará mais fraco com essa indevida e exagerada — na opinião deles — intervenção no mercado.
A regulação tem um tamanho extravagante: 1.500 páginas. Isso num país que se orgulha de ter uma das constituições mais sintéticas do mundo. E ela foi aprovada com quatro votos republicanos e dois votos independentes. Dois senadores não estavam presentes, dois democratas votaram contra a lei. O jornal americano acha que o trabalho de reconciliação com lei aprovada na Câmara pode estar concluído nos próximos meses, antes desse verão deles.
Um ponto de discordância é sobre o poder do próprio Congresso. A lei aprovada na Câmara permite ao órgão investigativo do legislativo, o Government Accountability Office, fazer auditoria nos empréstimos de emergência e em algumas decisões de política monetária do Fed. O Senado permite apenas ao GAO "estudar os empréstimos de emergência concedidos durante crises financeiras" e não auditar as decisões do banco central, explica o "WSJ".
As duas versões da lei criam o novo órgão supervisor, o conselho de reguladores do risco sistêmico, mas com poderes um pouco diferentes. A versão da Câmara dá ao conselho a possibilidade de requerer das instituições financeiras capital adicional, se o conselho considerar que o risco assumido nas operações está muito alto. O Senado deixa a exigência de capital adicional ser uma prerrogativa apenas do Fed.
Outra iniciativa da lei é criar um fundo com contribuições das próprias instituições financeiras que socorra com assistência de liquidez as instituições em casos de crise. Uma dúvida é: US$ 150 bilhões não são uma quantia pequena demais perto da dimensão dos ativos financeiros afetados quando uma crise acontece? Outra: já há o FDIC, que é para fazer o mesmo trabalho, não seria melhor fortalecê-lo? O Fed como emprestador de última instância não tem também este papel? Seja como for, é melhor ter mais fundos do que menos fundos, pelo que se viu da sangria de recursos do contribuinte que foi o resgate dos bancos americanos.
Uma velha crítica às propostas de conserto pós-crise é que elas se preparam para prevenir a crise que já aconteceu, mas não previnem as futuras turbulências que às vezes surgem dos excessos cometidos na tentativa de evitar a repetição do passado.
A história recente do Brasil mostra o contrário.
Foi por termos tido a crise bancária de 95-96 e termos desenvolvido o Proer, que saneou os bancos, que o país pôde enfrentar com mais solidez a crise global de 2008. Claro que a agilidade do Banco Central foi fundamental para proteger o país da contaminação. A nova lei americana não é trancar porta arrombada, mas uma tentativa de aprender com o custo da crise.