A voz do povo é a voz de Deus'', diz velho e famoso provérbio. Mas Deus não costuma se manifestar com assídua freqüência e o ''povo'' não tem, definitivamente, uma única voz. Talvez por isso tantos procurem interpretar, a seu modo, a voz do povo. Em particular, governos e governantes de inclinações populistas (de direita ou de esquerda) fazem mais: procuram elevar a sua versão da voz do povo à condição de verdade oficial. E se empenham em controlar, desqualificar e, em casos extremos, acovardar as vozes discordantes, utilizando de maneira discricionária a ampla gama de recursos públicos que lhes assegura o controle do aparelho do Estado. Como ironizou Weffort em seu clássico estudo sobre o populismo, ''todo o poder emana do povo... fiquemos pois sempre com o poder e estaremos sempre com o povo''.
A competição por este poder é conduzida, seja em regimes democráticos, seja em regimes autoritários, por indivíduos temporariamente juntando seus esforços, com o objetivo de alcançar posições de dominante influência. Grupos assim motivados são encontrados, não importa quão precariamente instalados, em torno do centro de poder de qualquer regime político, democrático ou não. Um fato da vida, notou George Kennan, também com fino humor, ''este grupo, uma vez no poder, dará expressão a uma ampla gama de motivações, incluindo as ambições políticas de seus vários membros, os interesses do grupo como tal, os interesses do partido e, finalmente, sem dúvida, aqueles interesses nacionais que não conflitem em demasia com qualquer destes outros, mais prementes objetivos''.
Em sociedades mais primitivas, ou com instituições precárias, ou sob regimes autoritários, tiranias ou anarquias (tiranias de alta rotatividade), a existência recorrente do núcleo duro de poder mencionado por Kennan resulta, com enorme freqüência, em verdadeiros atos de pilhagem dos recursos do país em benefício do núcleo duro e de seus satélites de poder local.
No outro extremo, as modernas democracias de nosso tempo - como Ruth Cardoso tanto insistia quando falava de nosso país - são sociedades mais complexas, nas quais existem inúmeras instâncias intermediárias e organizações da sociedade civil entre ''o povo'' e o núcleo do poder do governo legalmente constituído. Sociedades que contam com legislação e sistema judicial que há muito reconheceram a necessidade de antepor limites ao poder do governo - mesmo quando este emerge de uma maioria. Nestas sociedades, dentre as quais esperamos - como Ruth - incluir o Brasil, a diversidade, o pluralismo e a absoluta prioridade conferida à liberdade de expressão funcionam como um sistema de pesos e contrapesos aos impulsos de controle e aparelhamento do Estado pelo núcleo duro e seus satélites.
É sabido que a literatura econômica, no mundo inteiro, vem enfatizando cada vez mais - e com toda a razão, a meu ver - o papel central das ''instituições'' em processos bem-sucedidos de desenvolvimento econômico e social sustentados no tempo. Como Ruth Cardoso, acredito que as ''instituições'' de um país são, simultaneamente, três ''coisas'': o conjunto de organizações e agências do Estado; o conjunto de regras do jogo, práticas e procedimentos estabelecidos; e não menos importante, o conjunto de valores, crenças e posturas compartilhadas em algum grau - o suficiente para fazer diferença. Quando se avalia a qualidade do governo de um país, e a efetividade do funcionamento de suas instituições, temos de considerar estes três conjuntos, que se reforçam - ou se esgarçam - de maneira interativa, influenciando as percepções e as ''vozes do povo''.
Vale lembrar que o provérbio que abre este artigo é de origem grega. Os gregos, sabemos todos, não eram monoteístas, acreditavam em deuses, divindades, semideuses, semidivindades. Uma delas se chamava Fama, que dependia da opinião pública. O provérbio, na sua origem, proclamava a plausibilidade, se não a veracidade, de algo que havia passado a domínio público ou, pelo menos, afirmava que uma opinião mantida pela maioria assumia foros de veracidade. Na peça em que Shakespeare mais se debruçou sobre o tema, a fama depende do ''boato espalhado'' pelas palavras e pelo comportamento dos outros. ''A fama nem sempre erra'' é um ditado que existe hoje em inúmeras línguas e tem a vantagem de deixar em aberto se se trata de boa ou de má fama. O fato é que ambas existem na boca do ''povo'', que não se expressa com uma única, clara e imutável voz. E sempre tem suas várias vozes influenciadas pelas ''vozes do mundo''.
Estas vozes do mundo expressam cambiantes coalizões de geometria variável que se formam e se desfazem em função da natureza dos temas em debate - que não precisam ser, e não são, sempre os mesmos, como mostra o extraordinário desenvolvimento global das redes de comunicação eletrônica no País e no mundo.
Em outras palavras, o espaço em que se expressa ''a voz do povo'' é local (doméstico, nacional). O espaço em que exerce ''a voz de Deus'' é o espaço da fé (daqueles que crêem que Ele é onipresente, onipotente e onisciente). A voz do mundo não fala por si. É como o sertão do velho Rosa: está em toda parte; está dentro de nós; é do tamanho do próprio mundo; é onde nosso pensamento se forma, mais forte que o poder do lugar.
A voz do mundo, ou melhor, as vozes do mundo são uma miríade de fatos, signos, acontecimentos, expectativas de fatos e acontecimentos que precisam ser interpretados - esfinges a nos dizerem sempre: decifrem-nos ou os devoramos. Com a morte de Ruth, perdemos uma competente e bem-humorada decifradora de esfinges.
Queria, com este artigo, prestar-lhe uma homenagem, já que esses temas lhe eram caros. Que a sua postura sempre digna no debate sobre eles possa a outros inspirar. E que esta minha malograda tentativa possa ser recebida por sua bela alma, onde esteja, com o generoso sorriso que tanta falta nos faz.
Pedro S. Malan, economista, foi ministro da Fazenda no governo Fernando Henrique Cardoso
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