O Globo |
8/7/2008 |
José Padilha, diretor dos premiados "Tropa de elite" e "Ônibus 174", está terminando de rodar "Garapa", um documentário que mostra o dia-a-dia de três famílias que passam fome no Ceará. Em entrevista à "Folha de S.Paulo", ele disse: "É eticamente inadmissível que alguém, no grupo dos beneficiados históricos deste país, olhe para os miseráveis que não têm o que comer e diga que os R$58 que o governo dá a eles são uma política errada." Acrescentou que o valor do benefício era insuficiente para matar a fome daquelas pessoas. Ele está absolutamente certo ao fazer as duas afirmações. Mas absolutamente errado ao acreditar que o Bolsa Família, tal como está posto, seja a solução do problema. A enorme abrangência do programa pode ser contraproducente. Citando uma pesquisa sobre segurança alimentar feita pelo Ibase, Padilha disse que 11,5 milhões vivem a mesma situação das famílias de seu filme. Esse tipo de pesquisa, porém, não é capaz de "comprovar" se a fome existe de fato na população pesquisada, porque tudo se baseia em autodeclaração. Há uma ou duas perguntas objetivas, mas, na maior parte, elas medem mais expectativas, temores, frustrações. Um exemplo: "Nos últimos três meses, os moradores deste domicílio tiveram a preocupação de que os alimentos acabassem antes de poderem comprar ou receber mais comida?" Com perguntas assim, a pesquisa concluiu que 21% dos beneficiários (11,5 milhões) têm insegurança alimentar grave (fome), 34%, moderada (restrição na quantidade de alimentos) e 28%, leve (não há falta de alimentos, mas o temor de que venham a faltar). Feita apenas entre beneficiários do Bolsa Família, a pesquisa pode estar enviesada: conhecendo os objetivos do programa, talvez tenham respondido de modo a continuar a merecer o benefício. A pesquisa brasileira é inspirada na americana, aplicada lá desde 1995. Os EUA gastaram no ano passado US$53,3 bi com programas de distribuição de comida a quem está abaixo da linha de pobreza. Em apenas um deles, o Food Stamps, são 26,5 milhões de beneficiários, que recebem, em média, US$214 por família. Mesmo assim, em 2006, os números da pesquisa foram desconcertantes: lá existem 35,5 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar, sendo que 11,1 milhões em insegurança alimentar grave. Já disse antes: se nem na nação mais próspera do planeta, com os seus programas assistenciais multimilionários, a insegurança alimentar foi resolvida, o problema não é do país, mas do conceito de insegurança alimentar. O único método viável de comprovar a existência de fome em grandes grupos populacionais é pesando e medindo as pessoas. Porque, se a ingestão de calorias for menor do que a necessária, o indivíduo emagrecerá: a relação peso/altura mostrará esse emagrecimento, e, se ele for superior a certos limites, a fome estará comprovada. Para adultos, a OMS considera aceitável um índice de até 5% de emagrecidos, porque, estatisticamente, esta é a proporção de indivíduos magros por natureza em qualquer grupo. A Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE, realizada entre 2002 e 2003 (antes, portanto, do Bolsa Família) mediu e pesou os brasileiros e encontrou um índice de magros de 4%, dentro da normalidade (na Índia, o índice foi de 49%). Em apenas alguns poucos estratos a proporção excedeu os 5%: sempre mulheres, de uma maneira geral da zona rural e das faixas de renda mais baixas (o pico foi de 8,5%). Os dados da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS), realizada em 2006 e divulgada na quinta-feira, mostram, porém, que essa situação já foi superada (veja detalhes numa versão ampliada do artigo em oglobo.com.br/opinião). Mesmo entre as crianças, a notícia é excelente. A desnutrição aguda é também medida pela relação peso/altura, mas, para elas, o índice aceitável é de até 3%, o que corresponderia a crianças geneticamente magras. O índice encontrado pela PNDS foi de apenas 1,6%, ou seja: é virtualmente nula a fome em crianças no Brasil. A desnutrição crônica é medida pela relação altura/idade, que, segundo a pesquisa, "expressa o crescimento linear da criança e, nesta medida, sintetiza a história do seu estado nutricional". Em outras palavras, é uma relação que traz mais as marcas do passado. O índice aceitável é de até 3%, o que corresponderia à proporção de crianças geneticamente pequenas. No Brasil, o índice despencou de 13,4%, em 1996, para 6,8% em 2006, menos da metade do índice do México (15,5%) e menor do que o da Argentina (8,2%). Ainda há fome no Brasil? Sim, o que é uma tragédia, mas uma tragédia na casa das centenas de milhares, nunca na casa dos milhões. O filme de Padilha chama-se "Garapa" porque este é o nome da mistura de água e açúcar que as famílias como a que ele retratou dão a seus filhos quando não há alimentos. Um pesadelo. Mas que não tem as dimensões que ele acredita. A POF não detectou em nenhum estrato da população (nem mesmo nos de baixíssima renda) dietas à base de garapa. Por que a abrangência do Bolsa Família pode estar sendo contraproducente? Porque o programa distribui um dinheiro pequeno a 46 milhões de pessoas, na suposição de que todas passam fome. Se o programa fosse mais bem dimensionado, o dinheiro dado aos que, de fato, não têm comida poderia ser substancialmente maior a um custo total substancialmente menor. Em vez de R$10,8 bi, o Bolsa Família poderia gastar, sei lá, 20% disso, dando muito mais a quem precisa e investindo o restante em educação, único instrumento que tira de fato o pobre da pobreza. Se, em seu novo filme, Padilha usar três famílias que passam fome como exemplo de 11 milhões, terá sido induzido a erro pela leitura equivocada de uma pesquisa. Se não fizer as ressalvas, o filme não será a sua volta ao documentário, mas a sua permanência na ficção. |
Entrevista:O Estado inteligente
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