| A felicidade conjugal é muito rara. |
MITO MITOS
Depois que ela nos mata ou matamos por ela – no tempo presente – a realidade não existe. Só resta o mito. Só existe o mito. Que se estratifica em nós e se torna a verdade absoluta. Quando recordamos alguma coisa do passado na verdade recordamos o que já tínhamos gravado antes como recordação. Entenderam. Não? Ainda bem. Vamos em frente. Ou vão ler a literatura infantil de Sigmund Freud.
Mito. A começar pelo maior deles, a Religião. Em todas as suas formas. Inútil e fundamental. Sem religião o mundo explodiria. Religiosos comem e não comem segundo mandam os iluminados, cortam o prepúcio – nada contra, ainda que herege também sou circuncidado, embora por motivos práticos.
Outros se ajoelham diante de mais "santos" do que o ano tem dias, usando como vênia o maior logotipo do mundo ocidental, o sinal-da-cruz. E há o bilhão que reza cinco vezes por dia virado pro lado de lá, dança de vez em quando em volta de uma pedra. Tudo, admito, fundamental à preservação da espécie, enquanto aumenta suas reservas nucleares.
Mas deixa pra lá os grandes mitos e fica nos domésticos, Millôr. Conta:
"Já vivi o bastante para saber a realidade de mitos atuais, a meu redor. Poderia apontar dezenas no meu tempo de vida. (Tempo de vida é o que temos pela frente. O que já vivemos é tempo vivido.)
Vou ficar apenas em dois exemplos mitológicos. Um monumental – a célebre disputa Brasil X Uruguai. Um bilhão de pessoas! Estádio, Maracanã, ‘o maior do mundo!’. Inimigos foram contra a construção: ‘Um estádio inútil, onde atletas tísicos vão atirar discos de papelão’. Já era o complexo brasileiro de cachorro vira-lata, diagnosticado por Nelson Rodrigues.
Disputa emocionante até a entrada do gol fatídico que deu a vitória ao Uruguai. Pior, o mesmo gol tirou a vitória certa do Brasil. EU estava lá, como dizem os modestos. O estádio ficou mudo. O que era natural, nas circunstâncias. Mas daí ao gigantesco mito da multidão chorando, de virgens (ainda havia) cortando os pulsos, de milhares de pessoas envergonhadas pedindo asilo no Paraguai, vai toda uma gigantesca – e para mim divertida – mistificação. Como não dizia o dr. Johnson: ‘Football is the first refuge of the scoundrel’.
O segundo grande mito a registrar é individual: Nelson Rodrigues. Para evitar qualquer equívoco: Nelson foi – e continua sendo – um talento invulgar. Evito a palavra gênio tão desgastada. Era uma visão única do mundo, um grande teatrólogo, um humorista no maior sentido: a quintessência da seriedade. Mas era também um mestre no gênero do que hoje se chama promoção.
A mitologia começou na estréia de Vestido de Noiva. ‘Espetáculo estonteante numa platéia do municipal lotada’, como está em artigo também já mitológico, do próprio Nelson. EU estava lá, sentado ao lado do Nelson, e não vi o mesmo que ele. O espetáculo era bom, mas muito do revolucionário – tudo o que vivi rotineiramente virou revolucionário – se devia 30% às inovações de Ziembinsky e 70% ao seu pesado acento polonês. Havia também a consagração por um artigo consagra dor de Manoel Bandeira. Mas nós todos, na revista O Cruzeiro, Franklin de Oliveira, David Nasser, Jean Manzon, José Medeiros, João Condé, Alceu Pena, Luciano Carneiro, Freddy Chateaubriand, gozávamos o Nelson. Manoel Bandeira concordara com o valor de Vestido de Noiva, mas não quis se dar ao trabalho, falou preguiça, de escrever sobre ele. O que não perturbou o Nelson. Ele próprio escreveu o artigo que Bandeira assinou, acrescentando uma ou outra preposição e dois pronomes mesoclíticos.
Aí, deflagrado o processo, começaram a surgir artigos, referências, estudos, espontâneos ou provocados. O espetáculo era cada vez mais único, inigualável, miraculoso e, enfim!, Revolucionário. Então, na própria revista O CRUZEIRO, onde todos trabalhávamos juntos (até demasiado juntos, havia pouco espaço) e nos divertíamos o dia inteiro, também escrevi minha crítica.
Mas acabou o espaço. Fica, ou não, pra próxima semana".