Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 06, 2007

Um Brasil de Primeiro Mundo no sul do país


O vale da felicidade

Com base em uma educação rígida e de qualidade, surgiu
um Brasil de Primeiro Mundo a uma hora de Porto Alegre


Marcos Todeschini

Lailson Santos

DA ROÇA À UNIVERSIDADE
A foto mostra quatro gerações da família Krug, que fugiu da pobreza na Alemanha e, como tantas outras, começou a vida
do zero no sul do país, no fim do século XIX. Aos 88 anos, a maior frustração do agricultor Avelino (de pé na foto, ao lado de uma das filhas e da nora dela) é não ter superado o ensino fundamental. "Meu sonho era chegar à faculdade, mas não deu. Comecei então a batalhar pelos meus filhos e netos." Trabalhou duro para lhes patrocinar cadernos e livros –
o que foi fundamental para que alguns deles chegassem à universidade. Avelino nunca mexeu num computador, mas fez questão de dar aos bisnetos um laptop, com o qual eles brincam na foto. "A modernidade é meio esquisita para alguém da minha idade, mas sempre procurei olhar para a frente"




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Quadro: Um Brasil europeu
A uma hora de carro de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, um punhado de cidades abriga cerca de 660.000 pessoas que desfrutam e preservam, geração após geração, um alto padrão de qualidade de vida. É um pedaço do Brasil onde os índices de pobreza são tão baixos quanto os da Inglaterra, os analfabetos são tão difíceis de encontrar quanto no Canadá e vive-se mais tempo e com tanta saúde quanto os idosos de um país europeu como a Bélgica. O custo de vida ali ainda é baixo, os serviços públicos funcionam e as pessoas não se sentem inseguras por morar em casas sem muro. Nesse Brasil não tem fila. Em postos públicos de saúde, a consulta começa com o médico acionando seu computador para levantar o histórico do paciente. Com base nele, dá-se o atendimento de gente como o agricultor João Roque Knost. "Só sei de fila para ser atendido pelo SUS de ver na televisão", diz Knost. No trânsito, o grau de civilidade dos motoristas é invejável: apenas 2% deles cometeram infrações no ano passado. Diz o fiscal de trânsito Roberto Gussi: "Meu trabalho é um tédio". As crianças enfrentam turnos escolares extensos. Elas chegam a passar oito horas por dia em sala de aula. As notas superam em muito a média nacional e se igualam ao desempenho registrado em países de longa tradição de excelência escolar.

Um novo conjunto de estatísticas ajuda a entender por que essas cidades destoam da média brasileira em quase tudo (veja quadro). Nenhuma das cidades desse vale da felicidade tem mais de 500 000 habitantes. Essa vantagem de saída ajuda a explicar a harmonia urbana. Mas ela não é tudo. Cidades com até metade do número de habitantes em outras regiões já padecem de terríveis males urbanos. O que explicaria, então, o fato de as cidades gaúchas dessa região se saírem melhor do que as demais, mesmo quando são colocadas lado a lado com municípios brasileiros de mesmo tamanho e até menores? Os observadores são unânimes em detectar que o maior diferencial desses vinte municípios é terem atingido os mais altos níveis de educação há muitas décadas. Em 1920, enquanto a população brasileira se atolava em 70% de analfabetismo, a taxa do Sul beirava zero. Essa base educacional desencadeou naquelas cidades um ciclo virtuoso muito semelhante aos experimentados por países onde a educação esteve na vanguarda do desenvolvimento. O americano Douglass North ganhou o Prêmio Nobel de Economia em 1993 justamente por ter percebido o papel das instituições fortes na criação de riqueza. Diz Douglass North a VEJA: "Sociedades mais educadas dispõem de instituições mais eficientes e economias mais vibrantes". De um lado, pessoas com boa escolaridade são mais propensas a respeitar contratos e o direito à propriedade privada. De outro, é mais provável que em uma sociedade assim apareça gente qualificada para ocupar cargos de comando. A educação contribui também para que o processo de escolha dos governantes seja mais racional. Como se sabe, pessoas mais educadas são quase sempre mais críticas e têm mais aguçado o hábito de fiscalizar os governantes. Todos esses fatores se combinam, em maior ou menor grau, no tecido social do "vale".

Fotos Lailson Santos

SIM, NÓS TEMOS TêNIS NIKE E ALL STAR
Ao perder o emprego depois de dois anos como executivo numa empresa de calçados, o gaúcho Altamir Breda, 46 anos, não teve medo de apostar num negócio próprio. Em uma semana, conseguiu emprestadas as máquinas da tal firma, que havia falido, e recrutou todos os 250 ex-funcionários. Cada um deles recebeu uma cota da nova empresa. Num ato de ousadia, Altamir decidiu marcar entrevista com o presidente da All Star, nos Estados Unidos. Prometeu-lhe na ocasião maior produtividade do que as empresas brasileiras que até então fabricavam os tênis. Ao final, conseguiu a exclusividade da produção no Brasil. Tempos depois, viajou para a matriz da Nike e, de novo, saiu como representante da marca: "Aprendi a não ter vergonha de oferecer trabalho – se é bom, todo mundo quer"

A ênfase dada ao estudo, a partir da qual os vinte municípios gaúchos deslancharam, remonta ao princípio do século XIX. Isso mesmo: mais de um século antes de o Brasil despertar para o problema. Foi quando desembarcaram no sul do país as primeiras levas de imigrantes alemães, seguidos por italianos. A parte deles que escapava de disputas ideológicas – e não da miséria – já tinha nível de instrução elevado, mas mesmo a parcela mais pobre e menos escolarizada valorizava os estudos, tal como em seu país de origem. A religião protestante, predominante entre os alemães, ajuda a explicar o apreço dos imigrantes pelos livros. Já na Alemanha do século XVII os luteranos atraíam muita gente para suas escolas. O objetivo era alfabetizar crianças para que pudessem ler a Bíblia, além de lhes ensinar os rudimentos da matemática para que não fossem roubadas pelos nobres. Desse caldo cultural saíram os imigrantes que vieram morar no Brasil. Por essa razão, priorizavam a construção de escolas, que eles próprios administravam. O professor aposentado Walter Seger, 80 anos, foi aluno de um desses colégios comunitários: "Juntavam sessenta, setenta alunos numa sala. Ninguém queria ficar de fora".

Além da boa escolaridade, algo que certamente conta a favor desse próspero Brasil é o fato de sua economia ser menos dependente do estado que a dos demais municípios brasileiros. Um sinal claro disso é a parcela da população que arranja emprego no serviço público: 30% menos do que a média nacional. O outro indicador que permite aferir a influência do estado sobre a economia local é o nível de empreendedorismo nessas cidades, recentemente quantificado pela Fundação Getulio Vargas (FGV). A pesquisa revela que em nenhum outro lugar do país tanta gente se aventura num negócio próprio quanto em tais municípios gaúchos: é o caso de um de cada quinze trabalhadores de lá – um número três vezes maior do que no restante do Brasil. É o setor privado, portanto, o principal motor dessas economias.

ELE FABRICA CARROCERIAS
E O QUE MAIS APARECER

Aos 48 anos, Raul Randon já era o maior fabricante de carrocerias do país. Foi abatido pela rotina e pelo tédio e começou a lançar-se em novos negócios. Isso resultou num portfólio que inclui a produção de queijos e vinhos, o cultivo de maçãs e a criação de vacas – as de Randon são autênticas holandesas e vieram para o Sul a bordo de dois aviões de carga que ele fretou. Neto de um agricultor do Vêneto que chegou ao Brasil com apenas uma enxada e duas peças de roupa, Randon é um dos vários empresários da região que foram do zero ao topo. Recentemente, doze deles celebraram os velhos tempos com uma viagem à Escandinávia em um cruzeiro cinco-estrelas. "A gente se esbarrava nas filas dos bancos de Porto Alegre com os bolsos cheios de promissórias", lembra Randon. Esses tempos ficaram para trás

Parte do empreendedorismo local remete aos primórdios da região. Ao contrário dos colonizadores portugueses, que viviam numa economia monopolizada pelo estado, os imigrantes que chegaram ao Sul tinham em seu respectivo país mais chances de tentar a vida por conta própria. E eles faziam isso. Quando vieram ao Brasil, estavam justamente atraídos pela possibilidade de comprar terras por bons preços – e passaram aos filhos essa espécie de DNA para os negócios. Foi o caso dos Randon. Do avô que veio de Vicenza atracado a uma velha enxada, Raul Randon herdou o sonho de ser dono de empresa: "Meu avô tinha essa obsessão". Em 1950, ele apostou as economias numa oficina quando pouquíssima gente em Caxias do Sul tinha carro. Soou loucura. Aos 78 anos, no entanto, Randon é hoje dono da maior fábrica de carrocerias do país. Numa recente viagem à Escandinávia a bordo de um navio cinco-estrelas, ele e outros onze empresários da região davam o tom dos novos tempos. "Há quarenta anos estávamos todos juntos numa fila de banco em Porto Alegre com os bolsos cheios de promissórias", lembrava Randon. "Chegou a hora de aproveitar."

Essa e outras histórias de quem foi do zero ao topo também servem de incentivo para mais gente ali investir em novas empresas. Eis o saldo do empreendedorismo na região, de acordo com o levantamento da FGV: enquanto 80% das pessoas que abrem negócios no Brasil o fazem por falta de opção e fracassam em dois anos, nessas vinte cidades do Sul, ao contrário, os que prosperam são em muito maior número: 80%. Os especialistas chegaram a conclusões parecidas sobre as razões. Em suma, tudo se passa num Brasil em que a mão-de-obra é mais qualificada, trabalha-se mais duro e ainda por cima o sistema produtivo é organizado por instituições alheias ao estado. Eles estão se referindo, entre outras, às cooperativas, que agilizam a distribuição de matérias-primas para a indústria local, e às associações comerciais, que de fato se prestam ao papel de vender os produtos da região. Diz o economista Marcelo Neri, da FGV: "Estamos diante de um raro exemplo no Brasil de sociedade que conseguiu articular-se de modo eficiente".

O QUE ERA MATO VIROU UM SPA DE LUXO
A carioca Deborah Villas-Bôas, 42 anos, encomendou um estudo em seis cidades brasileiras para medir a demanda delas por um spa cinco-estrelas. Concluiu que em Bento Gonçalves o negócio teria mais chance de dar certo. "As pessoas com dinheiro disseram que adorariam gastá-lo com artigos de luxo, mas reclamavam que as ofertas eram limitadas", diz Deborah. Acreditando em suas conclusões, ela investiu 35 milhões de reais para construir o hotel. Antes mesmo de inaugurá-lo, na semana passada, já havia 300 pessoas dispostas a visitar o spa e banhar-se em cremes franceses à base de uva. Elas pagarão até 1 500 reais pela estada. A empresária também sonha atrair os turistas – e de novo tem dados para acreditar que isso vai funcionar. "Quem vem fazer negócios na região vai gostar de um momento de relaxamento"

Uma recente pesquisa indica que também a gestão pública nessas vinte cidades tem sido mais eficaz do que nas demais. Isso de acordo com um medidor de qualidade da administração financeira dos municípios, bastante aplicado por especialistas. Segundo esse critério, o desempenho de tais cidades é 20% superior ao da média dos 5.500 municípios brasileiros. Significa, entre outras coisas, que elas gastam menos com pessoal, mantêm a dívida pública em patamares razoáveis e têm dinheiro em caixa. Com base nisso, o professor Luís Klering, um dos autores do trabalho, conclui: "O levantamento deixa claro que há menos corrupção nessas cidades gaúchas. Um desvio maciço de verbas seria, afinal, incompatível com os números disponíveis". Dá-se, aí, um novo ciclo virtuoso. Lugares nos quais a corrupção ocorre em níveis mais moderados são mais atraentes aos investidores privados, algo também verificado pelo economista Douglass North. Comprova-se, mais uma vez, no caso do vale gaúcho. Foi, por exemplo, esse o ambiente que atraiu ao Sul a francesa Doux, empresa que lidera o setor de alimentos na Europa. Os franceses haviam cogitado estabelecer-se em outras cinco cidades brasileiras. No fim, preferiram a região gaúcha: "Escolhemos pelo conjunto de bons indicadores", resume Aristides Inácio Vogt, presidente da Doux no Brasil.

Por tudo isso, não é exatamente uma surpresa o fato de o PIB local crescer a um ritmo duas vezes maior que o do restante do país e as pessoas de lá melhorarem de vida. Os novos números mostram que 60% dos moradores dessas cidades são de classe média, enquanto no Brasil é o caso de apenas 20% das pessoas. O que isso quer dizer na prática? Que os moradores de lá têm mais dinheiro para gastar e que o tanto de gente que já ascendeu ao topo é suficiente para justificar os primeiros investimentos de alto luxo da região. É o caso de um spa inaugurado em Bento Gonçalves na semana passada, cujo diferencial são os tratamentos com cremes franceses à base de uva. Um banho do tal produto custa cerca de 1.500 reais. "Já tínhamos vários quartos reservados antes da inauguração", diz a carioca Deborah Villas-Bôas, que avaliou ser o interior gaúcho um lugar com grande demanda para um spa como o dela. Ficaria certamente às moscas na década de 60, quando apenas um terço das pessoas que moravam na região tinha luz elétrica em casa e as estradas para Porto Alegre eram de terra batida.

"OS FRANCESES AINDA VÃO SUSPIRAR PELO MEU VINHO"
Em feiras internacionais, o gaúcho Antônio Miolo já ouviu muita gente criticar seus vinhos. Ele reconhece que ainda está bem atrás dos melhores do ramo. Por essa razão, levou recentemente a Bento Gonçalves o francês Michel Rolland, que presta consultoria a 100 outras vinícolas no mundo. "Vamos ver se com o toque do francês a gente um dia aparece no ranking dos melhores", diz. Miolo já progrediu muito. Nos anos 90, fabricava com os irmãos vinho feito com as uvas colhidas no quintal de casa. Levava os garrafões aos restaurantes a bordo de um velho Fusca bege. Miolo foi o primeiro da região a produzir vinhos em grande escala. Hoje detém 30% do mercado nacional e exporta para vinte países, alguns deles europeus. Ele sonha: "Os franceses ainda vão suspirar pelo meu vinho"

Foi nos últimos quarenta anos, portanto, que esses vinte municípios gaúchos se aproximaram do mundo desenvolvido – e se distanciaram da média brasileira. Eles naturalmente passaram a atrair mais gente, seja de empresas que vêem nesses municípios mais chances de prosperar, seja de pessoas vindas de cidades maiores para tentar uma vida diferente num interior promissor. Os novos migrantes, afinal, fizeram a população local crescer 10% em cinco anos, algo que chamou a atenção dos demógrafos. Vêm basicamente das regiões Sul e Sudeste e têm bom padrão de renda. O típico recém-chegado é como o matemático Amadeu Leitão, de 36 anos, que trocou Porto Alegre por Carlos Barbosa acompanhado da mulher, Marta, e da filha, Sofia, de .2 anos. Sonhava viver no interior – ainda que o cinema mais próximo ficasse na cidade vizinha e não houvesse um único shopping center no horizonte. O matemático, no entanto, ganha bem, nunca mais se viu preso em um engarrafamento e caminha tarde da noite sem medo de ser assaltado. Nem todas as condições que deram origem ao vale da felicidade gaúcho podem ser repetidas em outras regiões. Sua tradição cultural, por exemplo, é irrepetível. Mas há ali um punhado de lições que ajudariam muito a harmonizar a vida urbana no Brasil caso fossem seguidas.

Com reportagem de Camila Pereira






Fotos Lailson Santos, Roni e Divulgação
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