Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, outubro 12, 2007

Refúgio no mundo da razão


A mulher que foi mutilada e ameaçada de morte pelos fundamentalistas – e ainda assim diz ter muita sorte


Jerônimo Teixeira

Ian Waldie/Getty Images
Ayaan Hirsi Ali: ablação do clitóris sem anestesia e cabeça quebrada

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Trecho do livro

Ayaan Hirsi Ali é uma mulher de sorte. Pelo menos, é o que ela diz no epílogo de Infiel (tradução de Luiz A. de Araújo; Companhia das Letras; 512 páginas; 49 reais), seu livro de memórias. Não deixa de ser uma declaração surpreendente: nas páginas que antecedem o capítulo final, Ayaan passa pela excisão do clitóris, em uma operação bárbara, realizada sem anestesia, e é espancada até ter a cabeça fraturada por um professor da escola islâmica – para ficar apenas com os infortúnios da infância. Crítica feroz da opressão das mulheres sob o Islã, a ex-parlamentar holandesa de origem africana detesta a insinuação de que seus ataques são resultado do ressentimento por seu passado "traumático". "Quero ser julgada pela legitimidade dos meus argumentos, não como uma vítima", escreve ela. Não resta dúvida, porém, de que sua biografia empresta força ao seu argumento. Ayaan diz basicamente que o mundo islâmico em geral está em descompasso com a modernidade e que as sociedades ocidentais oferecem mais liberdade e segurança, sobretudo para as mulheres. Nascida na Somália e criada por uma família muçulmana, Ayaan tem a autoridade da experiência para falar desses temas.

A grande sorte de Ayaan foi sua fuga para a Holanda, país que lhe deu cidadania e onde ela fez uma breve e controversa carreira política, como parlamentar pelo Partido Liberal. Na Holanda, ela colaborou com o cineasta Theo van Gogh na realização do curta-metragem Submissão, que inflamou os fundamentalistas por sua denúncia da condição feminina sob o Islã – e pelo sacrilégio de mostrar trechos do Corão, em árabe, impressos sobre a pele nua de uma mulher espancada. Em 2004, Mohammed Bouyeri, holandês de ascendência marroquina, matou Van Gogh quando ele andava de bicicleta nas ruas de Amsterdã. Depois de balear o cineasta, ele o degolou e afixou, com uma faca, uma carta em seu peito – repleta de ameaças a Ayaan, que então passou a viver sob vigilância constante de guarda-costas. Incomodados com esse aparato de segurança, os vizinhos de Ayaan pleitearam, na Justiça, que ela deixasse o prédio. Pela mesma época, surgiram acusações de que ela teria mentido na sua solicitação de cidadania holandesa, em 1997. Detalhes mínimos como a mudança de um nome de família quase causaram cassação da cidadania – e provocaram uma crise que levou à queda do gabinete liberal, em 2006. Ayaan mudou-se para os Estados Unidos, onde aceitou uma posição no American Enterprise Institute, um "think tank" conservador.

A mulher que estava destinada à servidão doméstica – o pai chegou a arranjar seu casamento com um desconhecido – acabou entrando para uma lista das 100 pessoas mais influentes do mundo elaborada pela revista Time, em 2005. Adversária do relativismo, Ayaan não admite que práticas como a ablação do clitóris e o casamento arranjado à revelia da mulher sejam desculpadas em nome do respeito a tradições primitivas. Essas posições perfeitamente razoáveis têm valido a ela uma bizarra acusação de rendição ao "imperialismo cultural" do Ocidente – como se ela devesse se submeter à opressão e à tortura por fidelidade a suas raízes. À parte sua história fascinante, marcante no livro de Ayaan é o desassombro com que ela afirma cabalmente a superioridade dos valores ocidentais: "Passei do mundo da fé para o mundo da razão. Sei que um desses mundos é simplesmente melhor do que o outro".


Mutilação religiosa

"A mutilação dos órgãos genitais da mulher é anterior ao Islã. Nem todos os muçulmanos adotam essa prática, e alguns povos que a adotam não professam o islamismo. Mas, na Somália, o procedimento sempre se justifica em nome do Islã. (...) O homem aproximou a tesoura. Uma dor aguda se espalhou no meu sexo, uma dor indescritível, e soltei um berro. Então veio a sutura, a agulha comprida, rombuda, os meus gritos desesperados de protesto, as palavras de conforto e encorajamento de vovó: 'É só uma vez na vida, Ayaan. Está quase acabando'. Ao terminar a costura, o homem cortou a linha com os dentes. É só disso que me lembro."

Trecho de Infiel

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