Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 15, 2007

Triunfo da covardia

Mauro Chaves

Por muitos que tenham sido os vícios de nossa formação histórica, que nos levaram a ficar muito atrás de sociedades com as quais emparelhávamos ainda nos primórdios do Império, na identidade nacional brasileira jamais prevaleceu o traço da covardia. Pelo contrário, se examinarmos os perfis das figuras mais emblemáticas dessa identidade, dom Pedro I e Tiradentes, veremos que extraíram, do fundo de suas almas indômitas, o fulcro maior de coragem que gerou nossa Independência. E de episódios de conflitos como a Revolução Farroupilha, Os 18 do Forte de Copacabana ou a Revolução Constitucionalista de 32, para mencionar apenas alguns exemplos - independentemente de se concordar ou não com seus princípios e ideais - jamais se negará a imensa coragem (cívica e física) que abrigaram. Mas vivemos hoje um trágico momento histórico em que a coragem só se manifesta na ousadia dos bandidos. Uma só pessoa, sem dispor de poder maior que o da intimidação, o da chantagem, o do aparente estoque de informações sobre as falcatruas dos outros - não obstante o volume das próprias -, é capaz de deixar uma instituição inteira (e, se bobear, um governo) de joelhos.

No degradante, humilhante e desmoralizante espetáculo "secreto" ocorrido no plenário do Senado da República, quando ficou patente a abjeta complacência corporativa em relação às bandalheiras praticadas em nosso espaço público-político, por sobre a ausência de valores, o vazio de princípios e a frouxidão de caráter dos que capitularam em sua função de defender os interesses coletivos, ressaltou o triunfo resplandecente da covardia. Covardia em esconder-se da sociedade, para que esta não pudesse assistir, ao vivo e em cores, àquela plena obscenidade política. Covardia em não reagir-se ao mais explícito e deslavado processo de intimidação de que já se tomou conhecimento numa Casa Legislativa, seja de uma democracia ou de uma República de bananas. Covardia em se ter mentido, despudoradamente, em enquete publicada, declarando-se voto de condenação que era de absolvição - ou pior, de ignava abstenção -, encoberto pela sessão e pela votação secretas. Covardia em ter-se permitido que um réu comandasse e manipulasse, ao extremo, seu próprio julgamento, colocando a seu serviço de defesa toda a estrutura do Poder indecorosamente exercido.

Os melhores argumentos de autodefesa, de quem não conseguira dar resposta alguma a acusações fartamente comprovadas, de favores privados oferecidos por interessados em favores públicos, de documentos forjados de operações inexistentes, de incompatibilidades gritantes entre rendimentos (legais) e patrimônio, eram as insinuações malévolas lançadas contra figuras tidas como de alta respeitabilidade, mas que permaneceram caladas, sem reagir à escandalosa chantagem perpetrada em pleno plenário da Câmara Alta. E outro defensor, utilizando-se da própria especialidade em assuntos fiscais, intimidava a todos, alertando para o "precedente" que significaria condenar quem praticou o que muitos ali poderiam ter praticado... Argumento esse que pareceu definitivo, no reforço da cumplicidade corporativa.

A sociedade brasileira, mesmo com todas as demonstrações de descaso, de avanço privado na coisa pública, de locupletações perpetradas por agentes desonestos do Poder, que sempre têm resultado nas indigestas pizzas dos acordões, em sua ingênua e esperançosa generosidade ainda comemorava o feito dos ilustres membros da mais alta Corte de Justiça do País, julgando que o enquadramento dos 40 mensaleiros - tomem o tempo que for os longos processos - já significava uma reviravolta nos costumes políticos caboclos: o fim da trágica impunidade. Não precisou passar mais de duas semanas para que a esperança de mudança ética se vaporizasse, cedendo lugar a uma das mais nauseantes sensações que os cidadãos brasileiros, com um mínimo de consciência cívica, haveriam de sentir. E agora, como se assistíssemos a uma cena surrealista do velho teatro do absurdo, vemos o presidente "absolvido" de uma Casa Legislativa rachada ao meio (por sua causa) anunciar - com a mais surpreendente arrogância de quem há pouco exibira tanto suas sandálias da humildade - que em hipótese alguma pedirá licença e nem mesmo tirará férias, porque é o único capaz de conduzir a Casa rachada!

A sociedade brasileira, não é só de agora, acompanha o maior despencar de valores de sua História. O mérito pessoal deixou de ser critério de evolução - profissional, econômica, social -, o esforço do aprendizado deixou de representar reconhecimento de qualidade, o espírito produtivo deixou de ser estimulado nas mais amplas esferas, tudo isso passando a ser substituído pela arte de aproveitar-se do compadrio, a habilidade em descobrir "jogadas" de enriquecimento fácil, especialmente as de alguma forma atreladas a algum Poder público.

É nessa estrada que segue nossa juventude, especialmente a parte dela prestes a entrar na luta por um espaço no mercado profissional. Essa juventude, que poderia ver no espaço público - como viu a juventude de tantas gerações anteriores - uma oportunidade de crescer para melhorar o mundo, o que pode vislumbrar, dentro do cenário carcomido que lhe é mostrado, na política e nos Poderes? Por um lado, ela só vê esperteza, ludibrio, enganação, falsidade, fingimento, falta de vergonha, arrogância, ignorância, cara-de-pau, falta de escrúpulos, enquanto, de outro, só enxerga hesitação, reticência, intimidação, desistência, rendição, submissão, encolhimento, amofinação, covardia - sim, uma imensa covardia que estende suas asas por sobre o território nacional.

Até quando?

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