Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 15, 2007

DORA KRAMER A democracia é bela

Em seu cinismo infindo, o senador Renan Calheiros estocou com ironia o enésimo pedido - o primeiro, porém, depois da absolvição - para que se retirasse da presidência do Senado, feito pelo senador Cristovam Buarque: "A democracia é bela porque permite momentos como esse", disse o presidente, magnânimo e sereno.

Faltou acrescentar: bela, imperfeita e tolerante, pois suporta que senadores ignorem o artigo primeiro da Constituição - "Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes" - e permite que continue no comando do Congresso Nacional, na lista dos substitutos eventuais do presidente da República, um cidadão sob suspeita.

Cidadão alvo de dois processos de natureza política, por quebra de decoro parlamentar, e um de caráter criminal, em tramitação no Supremo Tribunal Federal sob as objetivas acusações de corrupção, uso de notas frias e enriquecimento ilícito.

Bonito, pois não? O Senado disse que sim, a despeito de 35 senadores terem preferido o "pois sim", significando "não" graças às liberalidades da língua portuguesa.

Estes ensaiam agora uma reação, cuja extensão não se sabe ainda se é duradoura ou fugaz.

Se é pautada pela convicção da necessidade de uma resistência da minoria à insistência da maioria em transitar à margem da lei até prova em contrário, ou se tem apenas o efêmero objetivo de cumprir tabela junto ao público que reivindica o direito de não se conformar com o resultado de quarta-feira.

Note-se que ninguém pede revisão de votos nem alega irregularidades na sentença exposta no painel eletrônico.

A inconformidade é com o comportamento dos 46 senadores que consideram normal o presidente da Casa não poder explicar de onde tirou dinheiro para pagar a pensão da filha e, ao tentar fazê-lo, mentir, apresentar documentação incompatível com as declarações, misturar verba indenizatória com renda, inventar empréstimos inexistentes e mostrar uma evolução patrimonial absolutamente desconectada dos ganhos legalmente obtidos seja na política ou na pecuária.

Exatamente porque a democracia é bela, determinados senadores poderiam tê-la poupado, evitando agredir o preceito da exigência de lisura para os que a representam, com argumentos de desfaçatez ímpar para justificar a defesa daquilo que sabem muito bem ser indefensável.

O destaque nesse quesito vai para os senadores Francisco Dornelles e Aloizio Mercadante.

À guisa de demonstrar a coragem contida no voto da abstenção, Mercadante alegou que, com isso, queria o aprofundamento das investigações.

E por que não defendeu isso na fase das investigações?

Porque, segundo ele, não pensou nisso nos mais de 100 dias do drama, dando-se conta apenas na hora da votação. "Minha leitura foi de que não existe prova inquestionável de que o Renan recebeu recursos da Mendes Júnior por meio de lobista para pagar despesas pessoais", disse, deixando de lado a evidência maior: a existência de muitas provas de que maquiou dados na tentativa de provar o contrário, sem conseguir demonstrar de onde saíram os recursos entregues por meio do lobista, em dinheiro vivo, como os condutores do trem pagador do mensalão.

Mas, voltemos à abstenção, onde reside a desfaçatez mais patente do senador. Estava convencido de que esta era a posição mais correta e, no entanto, admite, não tentou amealhar votos fora de seu partido para ela, a fim de propiciar o "aprofundamento das investigações". Buscou apenas aqueles necessários a garantir a absolvição e, ao mesmo tempo, dar ao PT o discurso da pretensa isenção.

Mas há quem tenha feito mais e pior.

Ex-secretário da Receita Federal, Dornelles foi fundamental na sessão para fornecer elementos a quem esperava justificativas supostamente técnicas para absolver Renan Calheiros.

Admitiu a ocorrência de crime tributário no extenso rol de acusações contra o senador, mas, segundo ele, esse crime - compartilhado por vários ali, conforme insinuou - só pode ser tipificado pela Receita e, por isso, não configura quebra de decoro.

Não há relação entre decoro e tipificação de crime. A quebra reside na afronta ao princípio da probidade, seja de que natureza for a improbidade cometida. Decoro é um conceito, como falta de educação ou de vergonha: quando se dá, todo mundo reconhece. A prova é o próprio.

Tipificação pertence a outro mundo, que não é o da política. Mas, se não bastasse a extravagância do sofisma, o senador Dornelles prosseguiu, desta vez ferindo ele o decoro ao tentar exemplificar o que seria uma atitude indecorosa: "O sujeito estuprar uma menina dentro do Parlamento é uma coisa política."

Quer dizer, se estuprar fora do Congresso, tudo bem, não é quebra de decoro. É crime passível de tipificação, produção de provas e dependente de sentença transitada em julgado para a condenação.

Por proporcionar a existência desse tipo de senador da República é que a democracia, não obstante bela, é também imperfeita.

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