Entrevista:O Estado inteligente

domingo, setembro 09, 2007

A sombra do burro Gaudêncio Torquato

A sombra do burro



O primeiro eixo do poder heróico é a altivez, a elevação, a procura de uma marca de grandeza, que funciona como suporte da autoridade. O uniforme de camuflagem dos militares, por exemplo, que Nelson Jobim, o ministro da Defesa, exibiu no Haiti expressa o caráter grandioso que pretende imprimir ao seu perfil. O segundo eixo de quem se arvora em herói é a empáfia. Neste caso, o candidato ao vestibular do heroísmo, aventurando-se no terreno da admiração do próprio papel, escala a montanha da autoglorificação e se proclama o "maior governante de todos os tempos", guerreiro vitorioso de todas as batalhas para defender o povo, majestade na arte de plasmar o Estado à sua imagem e semelhança. Luiz XIV, o Rei Sol, com o seu lema "l?État c?est moi" ("o Estado sou eu"), simboliza tal identidade. A terceira mola do heroísmo é a identificação com a divindade. O general Franco se dizia "caudilho da Espanha pela graça de Deus". No Zaire, o filho de um cozinheiro de missionários católicos, Joseph Mobutu, que se tornou presidente, era aclamado como "meu pai e meu deus". E o ex-sargento do Exército colonial britânico Idi Amin Dada, ditador de Uganda, que se autoproclamou marechal, garantia que tinha Deus como consultor, conversando com ele "sempre que se fazia necessário".

Não haverá dificuldade em identificar entre nós uma figura com tanta densidade heróica. Trata-se dele mesmo, o presidente Luiz Inácio. Se mais uma vez se torna objeto de apreciação, é porque expressa, mais que qualquer outro figurante de nosso tempo, uma retórica tão retumbante quanto paradoxal, a denotar que não tem compromisso com a lógica mais rasteira ou com a conduta aconselhável a dirigentes de uma Nação. Não se espere que o destempero verbal de Sua Excelência ceda lugar a um léxico preciso, capaz de traduzir nuances do pensamento e da imaginação. Isso é impossível para quem gosta de repetir a idéia de que não é preciso ser letrado para governar o País. Até aí, tudo bem. Mas até iletrados possuem uma lógica interior, algo que os aconselha a não ultrapassar aquele território desconhecido onde podem quebrar a cara pelo simples fato de desrespeitarem regras do bom senso. Quando isso ocorre, é difícil evitar absurdos como a confissão do presidente de que o que sabe mesmo e gosta de fazer é "correr o País", nas antigas trilhas das Caravanas da Cidadania.

Garante, agora, que "conversa com Deus para pegar energias positivas". Se a interlocução se expressa na oração a que as pessoas se dedicam nos atos religiosos, não há motivo para recriminá-lo. Mas a índole lulista sugere que a lorota mais se aproxima da paranóia do ditador Idi Amin. É inquietante imaginar que a cognição presidencial esteja tomada por surto de infalibilidade, comum nos ditadores que "constroem" acesso direto ao Céu. Da mesma forma, preocupa o conceito de povo que Lula tenta impingir. Diz que o povo "vai se vingar" contra aqueles que o "esculhambarem". Ao admitir a vingança, o presidente parece ser intérprete da cidadania passiva, na qual, como lembra Bobbio, "os súditos se transformam num bando de ovelhas dedicadas tão-somente a pastar capim uma ao lado da outra e a não reclamar nem mesmo quando o capim é escasso". Torna-se, assim, o arauto por excelência da idéia do homem-massa, aquele que se deixa arrastar pela mais leve correnteza e que dá vazão ao império da retórica. O grande pensador espanhol Ortega Y Gasset enxerga no ciclo da massificação - caracterizado por vidas sem peso e sem raiz - certa dose de surrealismo.

É surrealista a declaração presidencial de que o País precisa gastar, justificando a contratação de mais 57 mil funcionários em 2008, o que elevará a conta de R$ 118 bilhões para R$ 130 bilhões. (O discurso de posse de Tancredo Neves, lido por José Sarney, dava ênfase ao refrão: é proibido gastar.) Poucas horas depois, o mesmo Lula garante que "o Brasil não vai gastar aquilo que não pode gastar". A dança das contradições faz parte da mágica lulista de transformar sinônimo em antônimo. Ora, só se gasta quando há dinheiro. Os cofres estão abarrotados. No próximo ano, só a CPMF gerará R$ 38 bilhões. O ministro Guido Mantega diz que sem esse dinheiro não haverá Bolsa-Família. E os recursos constitucionais para a saúde previstos na arrecadação recorde de R$ 510 bilhões? A ficha - se para uns ainda não caiu - é a seguinte. O Bolsa-Família não está ameaçado. É balela. Dinheiro não falta. Poderá, isso sim, haver certa compressão no cobertor social, com pequena diminuição do curral eleitoral lulista. Quanto à engorda do Estado, a pista leva aos cofres do PT, que, combalido com o mensalão, precisa aumentar o faturamento. Como se sabe, quanto mais petistas na máquina, mais dinheiro em caixa. A massa funcional, com aumentos salariais garantidos, retribuirá aos patrocinadores. Só o Executivo abrigará 40 mil servidores. Trata-se de formidável bolsão de opinião. A favor do lulismo-petismo.

Com tais encaixes, linguagens atravessadas e muita esperteza, reforçam-se as muralhas de um gigantesco projeto de poder. Enquanto isso, o povo está interessado em saber como é a história da sombra do burro. Vamos a ela. Demóstenes, o maior orador ateniense, viu-se impedido de falar por conta do barulho da turba. Passou, então, a contar um caso para chamar a atenção. "Um jovem alugou um burro no auge do verão para ir a Megera. Com o sol a pino, tanto o jovem quanto o dono do animal procuraram se sentar à sombra do burro. Empurraram-se. O dono dizia que alugara o burro, e não a sombra. O jovem retrucava dizendo que, ao pagar o aluguel, tinha direito à sombra." Demóstenes, a essa altura, fez menção de retirar-se. A multidão protestou. Queria saber o final. Ele voltou e disse: "Atenienses, que espécie de homens sois, que insistis em saber a história da sombra de um burro e recusais conhecer os fatos mais graves que vos dizem respeito?" Foi assim que o povo tomou conhecimento da podridão da República.

Entre nós, o que não falta é fábula sobre a sombra do burro.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político

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