A sombra do burro
Não haverá dificuldade em identificar entre nós uma figura com tanta densidade heróica. Trata-se dele mesmo, o presidente Luiz Inácio. Se mais uma vez se torna objeto de apreciação, é porque expressa, mais que qualquer outro figurante de nosso tempo, uma retórica tão retumbante quanto paradoxal, a denotar que não tem compromisso com a lógica mais rasteira ou com a conduta aconselhável a dirigentes de uma Nação. Não se espere que o destempero verbal de Sua Excelência ceda lugar a um léxico preciso, capaz de traduzir nuances do pensamento e da imaginação. Isso é impossível para quem gosta de repetir a idéia de que não é preciso ser letrado para governar o País. Até aí, tudo bem. Mas até iletrados possuem uma lógica interior, algo que os aconselha a não ultrapassar aquele território desconhecido onde podem quebrar a cara pelo simples fato de desrespeitarem regras do bom senso. Quando isso ocorre, é difícil evitar absurdos como a confissão do presidente de que o que sabe mesmo e gosta de fazer é "correr o País", nas antigas trilhas das Caravanas da Cidadania.
Garante, agora, que "conversa com Deus para pegar energias positivas". Se a interlocução se expressa na oração a que as pessoas se dedicam nos atos religiosos, não há motivo para recriminá-lo. Mas a índole lulista sugere que a lorota mais se aproxima da paranóia do ditador Idi Amin. É inquietante imaginar que a cognição presidencial esteja tomada por surto de infalibilidade, comum nos ditadores que "constroem" acesso direto ao Céu. Da mesma forma, preocupa o conceito de povo que Lula tenta impingir. Diz que o povo "vai se vingar" contra aqueles que o "esculhambarem". Ao admitir a vingança, o presidente parece ser intérprete da cidadania passiva, na qual, como lembra Bobbio, "os súditos se transformam num bando de ovelhas dedicadas tão-somente a pastar capim uma ao lado da outra e a não reclamar nem mesmo quando o capim é escasso". Torna-se, assim, o arauto por excelência da idéia do homem-massa, aquele que se deixa arrastar pela mais leve correnteza e que dá vazão ao império da retórica. O grande pensador espanhol Ortega Y Gasset enxerga no ciclo da massificação - caracterizado por vidas sem peso e sem raiz - certa dose de surrealismo.
É surrealista a declaração presidencial de que o País precisa gastar, justificando a contratação de mais 57 mil funcionários em 2008, o que elevará a conta de R$ 118 bilhões para R$ 130 bilhões. (O discurso de posse de Tancredo Neves, lido por José Sarney, dava ênfase ao refrão: é proibido gastar.) Poucas horas depois, o mesmo Lula garante que "o Brasil não vai gastar aquilo que não pode gastar". A dança das contradições faz parte da mágica lulista de transformar sinônimo em antônimo. Ora, só se gasta quando há dinheiro. Os cofres estão abarrotados. No próximo ano, só a CPMF gerará R$ 38 bilhões. O ministro Guido Mantega diz que sem esse dinheiro não haverá Bolsa-Família. E os recursos constitucionais para a saúde previstos na arrecadação recorde de R$ 510 bilhões? A ficha - se para uns ainda não caiu - é a seguinte. O Bolsa-Família não está ameaçado. É balela. Dinheiro não falta. Poderá, isso sim, haver certa compressão no cobertor social, com pequena diminuição do curral eleitoral lulista. Quanto à engorda do Estado, a pista leva aos cofres do PT, que, combalido com o mensalão, precisa aumentar o faturamento. Como se sabe, quanto mais petistas na máquina, mais dinheiro em caixa. A massa funcional, com aumentos salariais garantidos, retribuirá aos patrocinadores. Só o Executivo abrigará 40 mil servidores. Trata-se de formidável bolsão de opinião. A favor do lulismo-petismo.
Com tais encaixes, linguagens atravessadas e muita esperteza, reforçam-se as muralhas de um gigantesco projeto de poder. Enquanto isso, o povo está interessado em saber como é a história da sombra do burro. Vamos a ela. Demóstenes, o maior orador ateniense, viu-se impedido de falar por conta do barulho da turba. Passou, então, a contar um caso para chamar a atenção. "Um jovem alugou um burro no auge do verão para ir a Megera. Com o sol a pino, tanto o jovem quanto o dono do animal procuraram se sentar à sombra do burro. Empurraram-se. O dono dizia que alugara o burro, e não a sombra. O jovem retrucava dizendo que, ao pagar o aluguel, tinha direito à sombra." Demóstenes, a essa altura, fez menção de retirar-se. A multidão protestou. Queria saber o final. Ele voltou e disse: "Atenienses, que espécie de homens sois, que insistis em saber a história da sombra de um burro e recusais conhecer os fatos mais graves que vos dizem respeito?" Foi assim que o povo tomou conhecimento da podridão da República.
Entre nós, o que não falta é fábula sobre a sombra do burro.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político