Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 01, 2007

Roberto Pompeu de Toledo


A face mais cruel
do mensalão

Se a idéia não era senão construir uma maioria parlamentar, a operação foi ingênua e perdulária

A que fim serviria, exatamente, o mensalão, é questão que permanece em aberto, mesmo depois do preciso trabalho de dissecação do caso pela acusação do procurador-geral Antonio Fernando Souza e pelo relatório do ministro Joaquim Barbosa, peças que nortearam uma decisão que dignificou o Supremo Tribunal Federal. Na verdade, não cabia ao Supremo decifrar o enigma. Competia-lhe tão-somente verificar se havia ou não indícios suficientes de crime para abrir um processo. Para quem se interessa pelas entranhas da política, no entanto, e mesmo pelo que se passa na alma humana, o mais intrigante é o móvel que teria conduzido o quarteto que, na acusação do procurador-geral, é descrito como "núcleo central" da operação – José Dirceu, José Genoíno, Delúbio Soares e Silvio Pereira. A explicação convencional – comprar apoios no Congresso – é insuficiente. Se teve só esse objetivo, o "núcleo central" foi ingênuo e perdulário – ingênuo porque deu demasiado crédito à conversa de "governabilidade" que ronda a política brasileira; perdulário porque se dispôs a pagar muito mais do que poderia ter pago pela mesma mercadoria.

A palavra "governabilidade" saiu da ciência política para cair como uma luva na prática da política ao estilo gangsterístico. Passou em julgado de uns anos para cá que todo governo precisa ter no Congresso maioria segura, e quanto mais ampla melhor, sob pena de condenar-se ao mal paralisador da ingovernabilidade. Tal noção tem servido para multiplicar o cacife dos que estão na política para negócios de compra e venda. Bem pesadas as coisas, porém, leva jeito de mais um mito a atravancar a vida nacional. Há toda uma gama de ações governamentais, da política econômica à política externa, passando pela administração da saúde e pelos investimentos em infra-estrutura, que independem de aprovação do Congresso. Quando essa aprovação é necessária, a experiência mostra que no Congresso fala mais alto a subserviência que a resistência ao Executivo. O ímã do poder é forte demais; acresce que o presidente, com seu tesouro de dezenas de milhões de votos, ostenta uma legitimidade que só raramente o Congresso ousa desafiar.

Vá lá. Admitamos que, ao contrário dos Estados Unidos, pátria do presidencialismo, onde os presidentes conseguem governar com minoria – Bill Clinton é o último exemplo disso –, no Brasil seja impossível. E admitamos mais: que, no Brasil, para construir maiorias, só franqueando o acesso ao erário. O mensalão, mesmo assim, é um despropósito. Práticas mais convencionais, como a distribuição de cargos e a liberação de emendas ao Orçamento, dariam conta do recado. O "núcleo central" houve por bem somar a elas um derrame de dinheiro em espécie. É aqui que, se a intenção se limitava a comprar apoios no Congresso, à ingenuidade se acrescentou a prodigalidade.

Se a intenção ia além, qual podia ser? Afaste-se desde logo, por extrema, que fosse virar as instituições de cabeça para baixo, pela via de uma grande maioria, de tal modo que ao presidente fosse facultado governar por decreto e implantar, no limite até sem o empecilho das eleições, determinado modelo de sociedade e de ordem econômica. Mais verossímil é que o investimento fosse em partidos-satélite que, em acréscimo aos serviços no Congresso, cumprissem o papel de forças eleitorais auxiliares, de modo a garantir sucessivas vitórias nas urnas. Ambicionar uma longa permanência no poder tem sido praga recorrente na política brasileira. Foi, além do enriquecimento próprio, o objetivo da razia Collor/PC Farias; e no governo Fernando Henrique teve pelo menos no ministro Sergio Motta, segundo o qual o PSDB tinha um projeto "para vinte anos", um defensor. No PT, mais estruturado como partido, mais dono da verdade e mais tentado à utopia, é razoável supor que a praga alcançasse proporções delirantes.

O mensalão revela-se doença mais profunda quando se imagina que suas intenções ultrapassavam a construção de uma maioria parlamentar. Dá lugar a cenário em que um único grupo se considera detentor da compreensão do presente e da chave do futuro. Ou, o que vem a ser seu corolário inevitável, em que a alternância do poder é um incômodo a ser eliminado.

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O mensalão, tal qual descrito no Supremo Tribunal Federal, está morto. Não há possibilidade de rearticulação do grupo que, com o "carequinha" Marcos Valério numa ponta e o Banco Rural na outra, constituiu o que o procurador-geral chamou de "núcleo operacional e financeiro". Nem há muita possibilidade de o "núcleo central" voltar a dar as cartas. Mas continua a corrida de deputados em direção a partidos agregados ao governo. Dá para desconfiar que um mensalão oculto, ou quem sabe a expectativa de volta triunfal do mensalão, continua a animar a vida parlamentar. Estamos tão no fundo do poço, em matéria de práticas políticas, que, mesmo diante de uma decisão histórica como a do Supremo Tribunal Federal, é duro acreditar que as coisas venham, mesmo, a mudar.

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