Pinturas soviéticas feitas na medida para
propagandear o regime comunista ganham
compradores entusiasmados na Rússia
Duda Teixeira
No mercado de artes plásticas, nem tudo que sai caro tem alto valor cultural. Basta ter muita gente interessada no mesmo tipo de obra e o preço vai às alturas, mesmo quando se trata de peças para as quais os melhores críticos de arte torcem o nariz. No momento, os novos-ricos russos estão especialmente interessados em um tipo de produção artística que o restante do mundo valoriza sobretudo como testemunho de um determinado período histórico – o stalinismo. Os quadros mais caros, que muitas vezes são variações em torno de um mesmo tema (Stalin cercado de trabalhadores ou crianças radiantes de felicidade e entusiasmo revolucionário), podem custar 200.000 dólares cada um. Com essa quantia é possível comprar uma obra de brasileiros consagrados, como Portinari e Tarsila do Amaral.
Dez anos atrás, havia apenas cinco galerias de arte em Moscou especializadas em peças do período soviético. Hoje, são cinqüenta. As pinturas e os cartazes vendidos nesses locais obedecem ao realismo socialista, denominação genérica usada para classificar as obras literárias, visuais, arquitetônicas e até musicais que serviam ao propósito de fazer propaganda do regime comunista. Por esse motivo, são raros os críticos de arte que consideram o realismo socialista um movimento artístico. Os colecionadores russos não parecem preocupados com isso. Eles simplesmente encaram as obras do ponto de vista de um investidor ou com o distanciamento de quem não viveu os piores momentos do stalinismo. Em boa parte da população do país, que passou a vida sob as privações e a violência do regime soviético, a simples imagem dos líderes comunistas causa repulsa. Os mais novos, no entanto, que ainda estavam na adolescência quando o Muro de Berlim foi despedaçado, acham as pinturas soviéticas tão exóticas quanto um ritual funerário hindu.
Os quadros do realismo socialista são fáceis de identificar. Em geral, eles se caracterizam por mostrar operários, marinheiros, agricultores e políticos idealizados – ou seja, não como eles realmente eram, mas como o regime comunista queria que a população os visse. Essa regra era traduzida para a tela com o operário munido de um martelo, o marinheiro dando um nó vigoroso, o agricultor segurando uma foice e o político sempre rodeado por crianças felizes, segurando livros. Os corpos retratados eram perfeitos e fortes, como deveriam ser os da nova classe proletária, e o olhar devia estar fixado no horizonte – lá onde o futuro do socialismo deveria estar. O espaço para a criatividade era praticamente nulo, já que essa era a estética oficial do regime soviético a partir de 1932, instituída por Josef Stalin. Seus contornos, na verdade, já vinham ganhando corpo desde a Revolução de 1917. "O realismo socialista ficou com jeito de cartaz de má qualidade – peças de propaganda e não de investigação da natureza humana", diz o crítico de arte Jacob Klintowitz, curador do Museu Brasileiro da Escultura, em São Paulo.
Enquanto promovia, ou melhor, impunha o seu estilo pobre e previsível, o regime sufocou todos os demais. Lenin seguidas vezes declarou que não entendia e não tinha apreço pelas correntes de vanguarda, como o futurismo e o impressionismo. Após visitar uma exposição de arte futurista na Suíça, declarou que as obras eram "pura e simplesmente charlatanismo". Para a classe operária que ascendia ao poder, eram expressões de uma burguesia que precisava ser liquidada. No seu lugar, uma nova estética deveria surgir. Um esboço das regras do realismo socialista surgiu em 1922, quando foi criada a Associação dos Artistas da Rússia Revolucionária. O objetivo era promover um retorno ao figurativismo clássico, com quadros que pretendiam ser cópias quase fotográficas do mundo real, fossem pessoas, objetos ou paisagens. Em 1932, o Comitê Central do Partido Comunista finalmente determinou por escrito os princípios ideológicos do realismo socialista, com caráter de lei. Em seu livro Stalin – A Corte do Czar Vermelho (editora Companhia das Letras), o historiador inglês Simon Sebag Montefiore cita a definição do ditador soviético para o estilo artístico criado sob medida para seus propósitos de poder. "O artista deve mostrar a vida com veracidade. E, se ele mostra nossa vida verdadeira, não pode deixar de mostrá-la avançando para o socialismo. Isso é, e será, realismo socialista", disse Stalin. Na arquitetura, principalmente, essa diretriz significou um estilo com elementos muito parecidos com o das obras patrocinadas pelo fascismo de Benito Mussolini, na Itália, e pelo nazismo de Adolf Hitler, na Alemanha, com espaços amplos e construções monumentais.
A existência de grupos experimentais de artistas, as vanguardas, foi formalmente proibida. O regime soviético perseguia com determinação os artistas que não seguiam as regras oficiais. Um deles foi o ucraniano Kasimir Malevich, hoje valorizadíssimo no mercado de arte internacional. Fundador do suprematismo, movimento caracterizado por telas abstratas e quase monocromáticas, chegou a se empolgar com o regime comunista nos primeiros anos após a Revolução Russa de 1917. Pouco tempo depois, foi preso e interrogado pelo regime. A escola onde lecionava foi fechada e, ao final, ele foi obrigado a abandonar os quadros abstratos para pintar camponeses. Morreu na miséria, em 1935. Outro pintor, Vassily Ivanovich Shukhaev, emigrou em 1921 para a França, onde fez algumas de suas obras-primas. Uma delas, Retrato de Madame Pavlova, foi arrematada por 1,8 milhão de dólares em um leilão em Londres, em junho. Depois de voltar, em 1935, para a União Soviética, foi preso em 1937, acusado de espionagem, e passou dez anos exilado em Magadan, na Sibéria. O crime de Shukhaev foi o de não ser suficientemente "realista socialista". Os artistas que assumiam as novas diretrizes, por outro lado, caíam nas graças do regime. A procura recente por obras de arte do realismo socialista reflete a força do modelo econômico que nasceu das cinzas da antiga URSS. Desde a queda da União Soviética, o número de milionários na Rússia subiu de 10.000 para quase 90.000. Com imagens de Lenin e Stalin, eles festejam o capitalismo.
O escritor que fez as regras
Máximo Gorki (1868-1936) é o mais notável representante do realismo soviético – e também uma de suas figuras mais controvertidas. De modo trágico, ele simboliza o embate travado entre a consciência moral de um intelectual e o poder de sedução exercido pelos poderosos. Gorki, o mais popular escritor russo de sua geração, não resistiu e assinou seu pacto com o diabo. Bolchevique de primeira hora e amigo de Lenin, criticava abertamente o líder comunista por ignorar os direitos humanos e a liberdade de expressão. Por fim, doente e desiludido com a revolução, foi morar na Itália de Mussolini. De volta à União Soviética, em 1929, tornou-se um propagandista da ortodoxia stalinista. Primeiro presidente do Sindicato dos Escritores da URSS, fundado em 1934, coube a ele formular as regras literárias do realismo socialista, imposto a todas as vertentes artísticas.
Ele era tão próximo de Stalin que passava as férias com o ditador. Vivia em uma enorme mansão em Moscou, recebia uma volumosa pensão paga pelo estado e, sobretudo, a bajulação de um povo inteiro. A Mãe, romance que Gorki escreveu em 1906, foi uma das principais inspirações para o que viria a ser a fórmula soviética de fazer propaganda camuflada de arte. A obra também inspirou escritores fora da União Soviética, como o alemão Bertolt Brecht, autor da panfletária peça homônima. A morte de Gorki, em 1936, é cercada de mistério. Apesar de ser provável que ele tenha sucumbido por causas naturais, seu assassinato foi uma das acusações usadas dois anos depois no processo contra Nikolai Bukharin, bolchevique da velha-guarda que Stalin mandou fuzilar.