1808, do jornalista Laurentino Gomes, lança
luz sobre a fuga da família real portuguesa
para o Rio – fato que mudou o destino nacional
Mary Del Priore*
Fotos João Batista Perillo, Alexandre Battibugli |
Dom João VI, num retrato clássico (foto maior) e em passeio com a corte pelas ruas do Rio: sua vinda trouxe progresso, mas também vícios como a prática das "caixinhas" |
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Efeméride é uma palavra antiga e fora de uso que designa um fato importante ocorrido em determinada data. Em geral, é acompanhada de festejos, discursos e foguetórios. As comemorações do bicentenário da Revolução Francesa, por exemplo, levaram a um autêntico frenesi. Nenhuma pequena cidade escapou de plantar uma "árvore da liberdade", símbolo da igualdade entre os cidadãos. Esse élan comemorativo despertou, contudo, muitas críticas. Houve quem dissesse que a paixão dos festejos na verdade deixava em segundo plano o inventário dos acontecimentos históricos. E que estes nem sempre foram tão gloriosos. Pois no ano que vem os brasileiros terão sua grande efeméride. Em 2008, comemora-se a chegada da família real bragantina às praias tropicais. Preparam-se, em toda parte, congressos e festivais. Fala-se até mesmo na restauração da fragata que teria transportado dom João VI. Mas o leitor tem a mínima idéia do que está por trás disso? Se a resposta for não, já tem um guia: é 1808 (Planeta; 408 páginas; 39,90 reais), do jornalista Laurentino Gomes. Trata-se de um livro que se lê com um sorriso nos lábios.
O autor Laurentino Gomes: boa idéia sustentada por uma metodologia sem falhas |
Nascida da paixão pelo assunto, de dez anos de pesquisa e da sensibilidade do autor (que é diretor-superintendente da Editora Abril, que publica VEJA), a obra é um verdadeiro manual de viagem por todos os acontecimentos que envolvem esse mal conhecido episódio da história nacional. Mal conhecido porque, como bem diz Gomes, para entendê-lo é preciso despi-lo da rebuscada linguagem acadêmica com que é normalmente apresentado. E, convenhamos, nem todo mundo tem paciência para isso. Sua fórmula caminha no sentido contrário. Ela se vale de uma deliciosa mistura de bom humor e erudição para criar um amplo painel de acontecimentos e personagens que se cruzam durante os treze anos da aventura dos Bragança nos trópicos. Por meio de 29 capítulos curtos e cinematográficos, Gomes monta um quebra-cabeça em que cada peça se encaixa na precedente. E convida o leitor a cavalgar por uma sucessão de paisagens históricas. Assim, ele se vê no cais do Tejo, acenando para a família real que parte em caravelas caindo aos pedaços rumo ao Brasil. Cruza o Atlântico, em barcos apertados, onde faltam comida, água e sobram piolhos e baratas. Vê a esquadra se dispersar, graças às tempestades tropicais, e dom João, o rei tímido, supersticioso e feio, desembarcar em Salvador. Ali, em meio a recepções, o monarca assina a abertura dos portos que favorece comerciantes ingleses, mas também brasileiros, enriquecendo as duas pontas do comércio internacional. E o leitor compreende que a corte chega em pedaços. Maltrapilha, empobrecida e ansiosa por receber algo em troca do "sacrifício da viagem".
Depois das feéricas recepções no Rio de Janeiro, assiste-se, também, ao nascedouro de um estado perdulário e aos desmandos da má gestão. Mostra-se o início do compadrio e do toma-lá-dá-cá que dá origem ao Banco do Brasil: traficantes de escravos, fazendeiros e negociantes compram ações da instituição para ser compensados com títulos de nobreza. Vê-se surgir a prática das "caixinhas" nas concorrências e pagamentos de serviços públicos: 17% sobre saques do Tesouro. Vêem-se ainda as transformações pelas quais passa a colônia: a criação de escolas, de estradas, de hospitais. A europeização progressiva dos cariocas, que passam a consumir produtos importados, a vestir-se com a moda francesa e a copiar hábitos ingleses. Mas, por trás dos "progressos civilizacionais", a mancha da escravidão persiste: o sórdido mercado do Valongo a receber mais e mais africanos, fazendo a fortuna de empresários proeminentes e respeitados. Elias Antônio Lopes, que doou o palácio de São Cristóvão ao rei, foi um deles. O leitor acompanha, ainda, os viajantes estrangeiros que "descobrem" o Brasil, anotando em desenhos e livros de viagem suas impressões sobre nordestinos, paulistas e gaúchos; sobre negros e índios, homens e mulheres; sobre a natureza perpetuamente em festa. Ele acompanha, finalmente, o declínio de Napoleão, o todo-poderoso que expulsou dom João de Portugal, sua derrota na guerra peninsular e o exílio em Santa Helena. Mas também o ressentimento dos portugueses com seu rei, que os abandonou e esqueceu. O sentimento de orfandade alimenta o desejo pela revolução liberal que eclode na cidade do Porto em 1820, obrigando dom João VI ao retorno.
Fotos reprodução |
Sátira do "beija-mão" na corte (acima) e cena de comércio de escravos: luxo europeu e atraso |
Além dos episódios históricos apoiados em fontes documentais e nos estudos mais atualizados sobre o tema, o autor faz saltar das páginas os personagens emblemáticos do período. Minibiografias contam a trajetória do próprio dom João, de sua famigerada mulher, Carlota Joaquina, do funcionário da Real Biblioteca, Joaquim dos Santos Marrocos, do Cabugá ou Antonio Gonçalves Cruz, mentor de uma revolução liberal em Pernambuco que incluía o resgate de Napoleão da Ilha de Santa Helena para lutar lado a lado com os insurgentes, ou do Padre Perereca, cronista de usos e costumes da época, que descreve como ninguém o encontro de dois mundos: o europeu e o americano.
Gomes não adere à cosmética atual que, para reabilitar dom João, recorre a eufemismos como "transmigração" ou "translado". Para ele, houve "fuga" mesmo, pois o rei não tinha alternativa. A pressão exercida pelo gênio de Napoleão não dava margem a estratégias arrojadas. Não por acaso, a resposta portuguesa foi, simplesmente: pernas para que te quero. Sobre esse rei tão mal conhecido, Napoleão registrou em suas memórias: "Foi o único que me enganou". Enganam-se também os que acham que aquele foi um período sem maiores novidades e transformações. 1808 desvenda os acontecimentos com graça e leveza, convidando o leitor a descobrir o real sentido desta efeméride tão próxima. É uma síntese histórica que brilha pela limpidez das explicações e pelo interesse de projetar o passado no presente. É uma boa idéia sustentada por uma metodologia sem falhas. Uma boa maneira de apreciar o foguetório que virá, sabendo, de antemão, do que se trata.
* Mary Del Priore é historiadora e autora de O Príncipe Maldito – Traição e Loucura na Família Imperial (Objetiva, 2007).