Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 08, 2007

Nada com que se preocupar

Anatole Kaletsky


Vocês notaram o colapso do capitalismo global e o fim do sistema financeiro mundial como o conhecemos? Se não, não se preocupem. Como eu, vocês estavam de férias em agosto. Enquanto tiravam uma soneca na praia ou contornavam de carro uma cidade montanhesa medieval, vocês podem ter ouvido alguns estalidos no rádio sobre colapso de bancos, bancarrota de fundos hedge e milhões de americanos perdendo suas casas em hipotecas executadas. Mas vocês provavelmente não entenderam totalmente essas transmissões porque elas eram em servo-croata.

Ou, então, podem ter olhado uma página de uma revista ou jornal de negócios largado no aeroporto. Ali teriam visto uma crise financeira apavorante descrita em manchetes de arrepiar os cabelos sobre matérias consistindo inteiramente de jargão desconcertante e sopa de letrinhas: "Barclays foi obrigado e levantar 1,6 bilhão de libras em financiamento emergencial ontem (quarta-feira) do Banco da Inglaterra por causa das interrupções temporárias de liquidez na Libor com vencimento em três meses, em razão de recomposições descontínuas de agência de classificação de crédito para conduits de balanços alemães de securitizações de trocas de ABS inadimplentes lastreadas em hipotecas americanas subprime SIV-lite."

Supondo que não tenham captado imediatamente o pleno significado desses anúncios, vocês provavelmente voltaram à soneca em sua espreguiçadeira, tendo tomado nota mental para verificar o valor de sua carteira de ações e outros ativos assim que voltassem para casa.

Se finalmente enfrentaram esse doloroso exercício na manhã de quarta-feira, vocês provavelmente tiveram uma surpresa agradável. Nos preços de fechamento de terça-feira, teriam visto que o índice FTSE 100, que representa as 100 maiores ações na Bolsa de Valores de Londres, estava em 6.377, valor quase idêntico a seu nível de fechamento de 6.360 em 31 de julho. Todos os outros mercados acionários principais, exceto Tóquio, se comportaram pelo menos tão bem.

Isso significaria que todas as histórias sombrias sobre uma crise financeira global não passaram de um tolo exercício sazonal para tentar vender papéis extras, e todos os discursos trovejantes de políticos e reguladores denunciando salvamentos governamentais de tomadores e emprestadores irresponsáveis foram meros desperdícios de fôlego? A resposta, como acontece com muita freqüência no mundo da economia e das finanças, é sim e não.

Para muitos banqueiros, investidores profissionais e diretores financeiros, essa realmente foi uma crise de proporções históricas, e ainda é. Embora seja improvável que investidores comuns e correntistas de bancos percam - ou ganhem - algum dinheiro em conseqüência do que aconteceu nesse verão no Hemisfério Norte. O mundo das altas finanças jamais será exatamente o mesmo.

Toda a crise começou com a incapacidade de alguns donos de casa americanos muito endividados pagarem suas hipotecas, mas depois se espalhou rapidamente para bancos alemães, companhias de seguro francesas e fundos de pensão japoneses.

O mecanismo preciso desse colapso não é importante e uma explicação completa nos arrastaria de novo para a sopa de letrinhas financeira. O que conta é que dois pressupostos básicos que sustentaram a prosperidade das finanças globais na última década foram abalados, se não totalmente destruídos.

A primeira dessas falácias é que modelos matemáticos do comportamento financeiro passado podem prever o futuro com suficiente precisão para sustentar centenas de bilhões de dólares em operações financeiras lucrativas e transformar ativos como hipotecas a famílias de baixa renda e histórico fraco de crédito, que antes eram considerados muito arriscados, em propostas de investimento "triplo A", alguns deles pelo menos tão seguros quanto títulos dos governos americano ou britânico.

O segundo pressuposto questionável é que os mercados financeiros globalizados podem substituir quase completamente os obsoletos bancos e sociedades construtoras locais que costumavam dominar o sistema financeiro da cada nação, oferecendo abrigo sem risco e imediatamente acessível aos depósitos dos poupadores e investidores desse país, e em seguida emprestando o dinheiro assim levantado a empresas e tomadores de hipotecas locais.

O que aconteceu nesse verão, em suma, foi que alguns papéis supostamente ultra seguros "triplo A" se mostraram bem menos seguros que outros. E justo quando investidores em empréstimos hipotecários "triplo A" estavam começando a perceber isso no começo do verão.

Os que decidiram tirar seu dinheiro foram atingidos por uma segunda revelação chocante: esse dinheiro, que supostamente poderia ser retirado com uma notificação instantânea nos mais desenvolvidos e regulamentados mercados financeiros internacionais, por exemplo o mercado interbancário de Londres para empréstimos ao comércio atacadista, estava, na verdade, muito menos disponível imediatamente que o dinheiro depositado em qualquer banco respeitável.

Em conseqüência dessas revelações gêmeas, partes significativas do setor financeiro global jamais serão as mesmas. Bancos e fundos hedge que tiveram lucros enormes canalizando poupanças para países da Ásia e do Oriente Médio para investimentos americanos e europeus aparentemente seguros se tornarão menos lucrativos. Muitos financistas e banqueiros perderão seus empregos e a maioria deles terá suas bonificações severamente reduzidas.

Na Grã-Bretanha, em maior escala que nos EUA e no resto da Europa, os efeitos desse abalo financeiro serão sentidos muito além do setor financeiro - e não só pela resposta surpreendentemente tardia e inflexível do Banco da Inglaterra ao deslocamento, em comparação com o Federal Reserve (o Fed, banco central americano) e o Banco Central Europeu.

O principal problema na Grã-Bretanha é que uma proporção muito grande da prosperidade do país depende ultimamente da riqueza gerada pela globalização financeira. Portanto, é quase inevitável que os preços das moradias e a arrecadação fiscal do Tesouro sofrerão nos próximos anos, como aconteceu nos solavancos financeiros de 1987, 1992, 1998 e 2001.

Numa perspectiva de longo prazo, porém, essa crise provavelmente se mostrará mais uma tempestade num copo d?água. Os emprestadores seguramente ficarão mais cautelosos durante algum tempo depois dos traumas que acabam de sofrer, mas os efeitos econômicos desses padrões de crédito mais rígidos - em emprego, salários, lucros e até preços das moradias - serão grandemente compensados com o estabelecimento pelo Banco da Inglaterra e o Fed de taxas de juro em níveis mais baixos do que parecia provável há alguns meses.

Mais fundamentalmente, a crise do mês passado provavelmente não interromperá o progresso incessante da globalização financeira mais que suas antecessoras da última década. A lógica econômica da globalização financeira continuará sendo mais impositiva do que nunca: investidores e poupadores de todo o mundo continuarão buscando oportunidades financeiras onde quer que elas possam surgir.

Banqueiros e gestores de fundos continuarão identificando essas oportunidades, estruturando novos tipos de instrumentos financeiros e depois os distribuindo além das fronteiras nacionais - sempre aprendendo alguma coisa com os erros passados, mas nunca o suficiente para satisfazer os céticos pessimistas.

E desde que o governo e o Banco da Inglaterra continuem jogando bem suas cartas, como têm feito em geral desde meados dos anos 80, Londres continuará sendo o lugar natural de crescimento desses negócios financeiros.

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