Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, setembro 14, 2007

Míriam Leitão - Eles nada viram



PANORAMA ECONÔMICO
O Globo
14/9/2007

O senador Francisco Dornelles convenceu vários senadores quando defendeu Renan Calheiros com o argumento de que no máximo ele "só" cometeu um crime tributário. Uma frase espantosa na boca de um ex-secretário da Receita que sabe a chaga que é a sonegação. É uma pena que Dornelles não tenha visto os outros fartos indícios de ilícitos cometidos pelo seu defendido.

Dornelles não viu nada de errado em um senador usar um funcionário de uma empreiteira para o pagamento de conta pessoal. Ele e todos os que votaram a favor de Renan Calheiros - e mais os seis que ficaram em cima do muro com a abstenção - não acham estranha essa relação promíscua entre uma autoridade e um lobista de uma empreiteira. Foi apenas o pedido a um amigo que, por acaso, trabalha numa empresa "prestadora de serviços".

Os senadores não se impressionaram com as constatações da Polícia Federal. Depois de analisar as contas, a PF disse não haver nexo entre saques nas contas do senador e o pagamento feito à mãe de sua filha, fortalecendo as suspeitas de que Cláudio Gontijo não era repassador do dinheiro de Renan Calheiros, mas sim pagador de suas promessas. Os senadores, aqueles 46, acham natural que Mônica Veloso recebesse no escritório da empreiteira, em dinheiro vivo, num envelope, recursos sem origem clara, pagos por fora do sistema bancário.

Quarenta e seis senadores não viram nada de errado nos documentos da defesa apresentados pelo senador nos quais a PF comprovou haver notas frias, recibos falsos e comprovantes de negócios com empresas fantasmas. O que é isso? Nada. É "apenas" um mero crime tributário, acusação que pode recair sobre qualquer um dos outros senadores, alertou Dornelles.

Os defensores do presidente do Senado também não devem ter notado que o senador Renan Calheiros usou sistematicamente a presidência do Senado como seu feudo; sentou-se na cadeira de juiz de seu próprio processo; abusou do poder ao usar toda a estrutura do Senado para seu próprio proveito; deu ordens aos seguranças da Casa como se fossem empregados contratados para a sua própria segurança. Ninguém viu que ainda na quarta-feira, sendo réu na sessão, ele continuava de fato comandando seu julgamento. Como, por exemplo, quando do plenário fazia sinais ao senador Tião Viana. E o primeiro vice-presidente, lamentavelmente, entendia os sinais e os acatava.

Não pareceu conclusivo para os senadores que escolheram continuar sendo presididos por Renan Calheiros que ele tenha feito um empréstimo, ou um suposto empréstimo, e tenha sonegado informações à Receita Federal. Isso não tem importância porque é "apenas" um crime tributário.

Foi um crime tributário que levou Al Capone à prisão, como todos sabem, mas no Senado brasileiro isso é considerado um pecadilho sem importância, um erro decoroso, já que quem o comete não está ferindo o decoro parlamentar. Não notar sequer que o erro é erro é parte da tragédia do Brasil. Foi esse mal que atingiu o Senado.

O Brasil é um país onde a sonegação foi longe demais. Parte da sonegação é incentivada pelo excesso de impostos, que soterra pequenos empresários e os força a simplesmente construírem seus negócios à margem da legalidade, mas parte da sonegação brasileira é pura esperteza de quem quer fugir do Fisco deixando todo o peso de sustentar o Estado nos ombros de quem paga. Os negócios da informalidade brasileira, ou da subestimação da receita das empresas formais, só vão adiante porque o país aceita: não há o hábito, por exemplo, de se pedir nota fiscal.

Mas como o país pode se corrigir se as autoridades fazem o que fazem? Se o ex-ministro da Justiça, hoje presidente do Senado, Renan Calheiros anda por este mundo de sombras - de notas frias e empresas fantasmas - e um senador, ex-secretário da Receita Federal, diz que tudo o que ele fez de errado foi "só" um crime tributário. E a maioria dos senadores concorda e vota pela absolvição.

O Senado escolheu ficar à deriva. Nos últimos meses ele tem vivido apenas em torno da crise criada pelo comportamento do seu presidente. O assunto que domina a agenda legislativa brasileira no Senado passou a ser não o interesse do país, mas sim os negócios particulares do senador que temporariamente preside a Casa, uma completa anomalia institucional.

O Senado tomou uma decisão que afrontou a opinião pública, mas a opinião pública pode eventualmente estar errada ou pedindo algo que não pode ser feito, sob pena de se atropelar o devido processo legal. Nesses casos, cabe às autoridades terem a coragem de optar pela decisão impopular, mas correta. Não foi isso, no entanto, que aconteceu nessa triste quarta-feira. As provas de quebra de decoro parlamentar foram seqüenciais. Renan Calheiros é uma espécie de serial killer do decoro parlamentar. Ele quebrou o decoro nos casos levantados no primeiro julgamento e nos casos que ainda serão analisados; ele o quebrou diariamente na maneira como usou o Senado nos últimos cem dias. Mas uma pessoa sozinha não ameaça uma instituição. O que, sim, fragiliza o Senado da República é o dar de ombros da maioria, é o pouco-caso, é a tolerância com os desvios, como se eles fossem simples errinhos, nada demais, coisa que pode acontecer com qualquer um. O que põe em perigo a instituição é o que 46 senadores não viram de errado no tortuoso comportamento do senador que os preside.

Arquivo do blog