O Globo |
14/9/2007 |
O filósofo italiano Norberto Bobbio, cujo modelo de "governo público em público" foi citado nos votos de ministros do Supremo em defesa da liminar que permitiu a presença de deputados na sessão secreta que acabou absolvendo o presidente do Senado, Renan Calheiros, dá a base para a necessária mudança do regimento interno, tanto na Câmara quanto no Senado, para acabar com as sessões e votações secretas. As diversas formas de traição que foram reveladas na votação, traições tanto aos eleitores quanto aos interesses pessoais envolvidos, reforçam a idéia de que nada deveria ser secreto nas duas Casas do Congresso. Há mais de um ano está dormindo nas gavetas da Mesa da Câmara uma emenda constitucional, já aprovada em primeiro turno, que acabou com o voto secreto. A segunda votação, e a tramitação no Senado, nunca aconteceram. Antes disso, em 2003, senadores derrubaram uma emenda que propunha o voto aberto, alguns deles hoje defensores ardentes da transparência do voto, como os senadores tucanos Arthur Virgílio, Sérgio Guerra e Tasso Jereissati, e democratas como José Agripino Maia. Tomara que tenham mudado de opinião com base na experiência da democracia, e não apenas devido a serem oposição no momento. O senador Aloizio Mercadante, tido como o grande articulador da manobra governista que livrou Renan da cassação com o recurso da abstenção, garante que, embora tenha anunciado que se absteria, não deu orientação nenhuma à bancada petista. Ele explica que tentou adiar a votação, pois não estava convencido de que o processo havia chegado a seu fim e queria mais investigação. Como não obteve apoio de nenhum partido, anunciou sua decisão, pois, assim como não se sentia em condições de condenar o presidente do Senado, não queria arquivar o processo porque via indícios, mas não ainda provas, contra Calheiros. Pelas contas da situação, pelo menos seis votos oposicionistas foram a favor de Renan, o que teria impedido sua condenação. Dois deles já eram conhecidos: os senadores João Tenório, alagoano amigo de Renan, e Edison Lobão, aliado de Sarney, não seguiram a orientação partidária. Os oposicionistas admitem que, além desses, outros três ou quatro votaram com Renan, mas alegam que esses votos teriam sido neutralizados pelos votos contra o presidente do Senado que teriam vindo do PMDB e da base aliada do governo. O que teria decidido mesmo a votação teria sido a estratégia de abstenção, que deu a senadores da base, especialmente petistas, a saída para não votarem contra Renan. O fato é que a sessão e a votação secretas cumpriram o papel que lhes era atribuído pela base governista, o de proteger o presidente do Senado. E o PT foi o grande articulador da sua defesa. Mercadante alega que o PT nunca anunciou que votaria contra Renan, e portanto não estaria sendo incoerente na posição de defendê-lo. Ora, a questão é exatamente essa, a de transformar em questão partidária, em luta política, uma decisão sobre a ética na política. Talvez esteja aí boa razão para retirar tanto da Câmara como do Senado a tarefa de julgar seus pares, jogando a responsabilidade para o Ministério Público. Essa é a posição do senador Francisco Dornelles, por exemplo, que teve papel decisivo ao discursar na sessão secreta. Ao alertar os senadores de que o único crime de que Renan poderia ser acusado era o fiscal, ele advertiu que, sem que um processo da Receita Federal seja concluído contra o senador, não seria possível condená-lo, pois os senadores estariam abrindo um precedente perigoso. O que pareceu a muitos uma ameaça velada de Dornelles ele classifica de "uma análise técnica, em defesa da cidadania". Tanto Dornelles como Mercadante argumentam que não havia provas conclusivas de que Renan utilizou-se de dinheiro da empreiteira para pagar a pensão alimentícia de sua filha, e apenas os indícios de que ele, não tendo recursos próprios para fazê-lo, teria sido ajudado pela empreiteira. Esses indícios, e a negativa da empreiteira, não seriam suficientes para condená-lo. Deixando de lado aspectos políticos da questão, inclusive os diversos procedimentos antiéticos utilizados por Renan para interferir no processo contra si, os senadores só se ativeram aos aspectos legais do caso, numa atitude que, sem dúvida, beneficiou Renan. Esse parece ser o caso onde prevaleceu um sentimento corporativo forte, e as relações interpessoais, sintomas que o filósofo Norberto Bobbio identifica como prejudiciais à plena realização da democracia. Para compreender o contraste entre "os ideais democráticos e a democracia real", Bobbio dizia que algumas situações prejudicam a democracia, como, por exemplo, a representação política transformar-se em "representação de interesses". Assim, diz ele, relações de natureza pública tornam-se de natureza privada, um ato público transforma-se numa relação de troca. Da mesma maneira, a democracia é prejudicada pela continuidade do poder oligárquico, como no caso do Senado. A não transparência dos poderes, refletida no caso com a decretação da sessão e votação secretas, significaria uma barreira à realização do governo republicano, a que os ministros Ayres de Brito e Celso de Mello se referiram em seus votos no Supremo. Segundo Bobbio, a democracia deveria ter "um governo do poder público fundado na publicidade, uma coisa pública (não privada) e manifesta (não secreta)". Também o ministro Marco Aurélio Mello disse não conceber o funcionamento "de qualquer Parlamento, de qualquer casa legislativa, de forma secreta, como se estivesse a lidar com coisas ligadas a seita, e não com algo que interessa sobremaneira aos cidadãos em geral". Por sua maioria, o Supremo deu o passo inicial para que a democracia chegue às decisões do Congresso Nacional. |
Entrevista:O Estado inteligente
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sexta-feira, setembro 14, 2007
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