O Globo |
5/9/2007 |
O presidente Lula está se especializando na arte de forjar uma realidade com sua retórica de palanque para se contrapor aos fatos. É a versão pós-moderna da máxima rodriguiana de que, se os fatos não correspondem à minha visão da realidade, pior para os fatos. Nelson Rodrigues pelo menos era um mestre da ficção, mas um presidente da República deveria ter mais respeito pelos fatos. Depois de ter abdicado de sua função para voltar a ser um militante partidário no congresso do PT, pondo-se frontalmente contra a decisão do Supremo que mandou para o banco dos réus toda a cúpula petista de seu primeiro mandato, e mais uma dúzia de colaboradores e aliados políticos de primeira linha, vem agora Lula, em mais um surto autista, dizer que o governo não autorizará uma gastança descontrolada. Isso no dia em que foi anunciada a disposição de contratar mais 56 mil funcionários públicos, aumento de 10% nos gastos com pessoal contra uma previsão de crescimento do PIB de no máximo 5%. Desde 2003, o governo terá contratado quase cem mil novos servidores. Ontem, o juiz substituto da 11ª Vara Cível de Brasília Paulo Cerqueira Campos, ao considerar que não houve um empréstimo na relação entre o lobista Marcos Valério e o PT, usou os fatos para contestar indiretamente o presidente: "No afã de galgar o poder político, o PT traiu seus ideais e seus afiliados. (...) Os fatos, públicos e notórios, como afirmei, nos mostram que o "eficiente esquema de repasse ilícito de recursos" (vulgarmente apelidado de mensalão) foi - e certamente ainda é - o mais repugnante de que nossa triste história política já ouviu falar..." Já escrevi aqui que talvez o maior dano que Lula esteja causando à vida pública do país é, com o seu carisma e sua popularidade, sustentar posições que dificilmente outro político sustentaria, especialmente se tivesse Lula como líder oposicionista. Criando um clima de permissividade e complacência com as transgressões, Lula transmite aos aliados que tudo é possível, que ele está no poder para garantir a impunidade, em troca de fidelidade política. Foi por isso que, depois do mensalão, que segundo Lula era folclore político, surgiram os aloprados comprando dossiês. E o cinismo com que o presidente do Senado, Renan Calheiros, se defende das acusações é filhote dessa situação surrealista que vive o país. Tudo é permitido quando se tem a maioria no Congresso e o apoio do Planalto. Mais uma vez ontem, na véspera de ser julgado pelo Conselho de Ética, Renan tratou os fatos a pontapés e criou sua própria realidade, dizendo que todas as suas alegações foram comprovadas pela Polícia Federal e que ele rebateu todas as acusações. O relatório dos senadores Marisa Serrano e Renato Casagrande, este do PSB, partido da base do governo, mostra cabalmente que Renan mentiu à Comissão e a seus pares no Senado, apresentando documentos forjados. O empenho do governo em salvar Renan, e as últimas denúncias que pesam sobre ele, de ser o principal articulador de uma coleta de propinas em ministérios do PMDB, no primeiro governo Lula, reforçam uma suspeita crescente no Congresso: sem mandato, Renan pode se tornar um novo Roberto Jefferson. Voltando à realidade virtual criada pela retórica presidencial, Lula disse ontem que o país está crescendo a um ritmo chinês, e que o crescimento sustentável de nossa economia durará dez anos. A comparação com a economia chinesa tem razão de ser quando se refere ao aumento do consumo das classes mais baixas, uma motivação real para se comemorar, mas nada indica que esse ritmo possa ser sustentável com a política de gastos públicos descontrolados e nenhuma perspectiva de reformas estruturais na economia. A aceleração dos gastos com pessoal é um reflexo do fortalecimento das bases petistas na máquina do Estado, pois o funcionalismo público há muito se tornou o núcleo central do PT, mas também a reafirmação de uma visão de Estado forte, conseqüência dessa predominância. Lula parece escrever certo por linhas tortas quando diz que investir no ser humano é tão ou mais importante do que construir fábricas ou comprar máquinas. Mas é apenas aparência. Na realidade, enquanto cuida dos mais desamparados aumentando os gastos do Estado com políticas sociais que, no plano imediato, estão reduzindo a miséria e melhorando a distribuição de renda, a longo prazo está deixando de criar condições para que o país cresça sustentavelmente, e a miséria e a distribuição de rendas sejam melhoradas de maneira permanente. O governo investe menos do que deveria, ou investe mal, em saúde, educação, infra-estrutura, por falta de recursos ou de gestão eficiente. E a iniciativa privada é cada vez mais arrochada pela carga tributária, que tem que aumentar a cada ano para manter os gastos do governo. E o governo luta para manter os R$36 bilhões que lhe rende a CPMF. Junte-se a isso um ambiente político envenenado, e temos um quadro de longo prazo nada promissor. Já estou até acreditando que Lula não quer mesmo um terceiro mandato em 2010. Se o assessor especial da Presidência Marco Aurélio Garcia tivesse lido o ótimo livro do ex-ministro da Justiça de Sarney Saulo Ramos, não teria sido flagrado pelas câmeras da TV Globo fazendo aqueles gestos fatídicos. Na página 315 de "Código da vida", Saulo conta que quando chegou à Consultoria Geral da República, sua sala era toda envidraçada, e ele teve que pôr muitas cortinas para evitar a visão de fora, "sobretudo dos jornalistas, que ficavam por lá, vigiando as notícias que entravam e saíam". |
Entrevista:O Estado inteligente
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