Participo hoje de um debate no “Botequim Filosófico” da Bienal do Livro, juntamente com o senador Eduardo Suplicy e o antropólogo Gilberto Velho, sobre um tema que não poderia estar mais atual: “Ética”. A questão que está colocada é se é possível falar em valores no mundo de hoje. Vamos discutir conflitos, responsabilidades e direitos, na sociedade e na política. “Ainda se pode falar em ética no mundo, sobretudo no Brasil? Que mecanismos seriam possíveis para a restauração e a manutenção dos valores éticos em uma sociedade?”. Vamos para esse debate sob o impacto da decisão do Senado de absolver Renan Calheiros.
Vou especialmente cético, pois creio que vivemos um período em que se confundem o desânimo da sociedade civil com o cinismo dos que detêm a maioria eventual das decisões políticas, seja no Parlamento, seja na visão popular. O presidente Lula, ao desculpar o mensalão, instalou no país a ética do cinismo e, valendo-se de sua popularidade, protege seus aliados políticos e lhes dá garantias de impunidade.
O governo que se orgulhava de ser ético — “este é um governo que não rouba nem deixa roubar”, repetia José Dirceu, hoje réu como o chefe de uma quadrilha que atuava a partir do Palácio do Planalto — patrocina uma coalizão política que se baseia nos conchavos mais baixos, nas chantagens mais descaradas, no pragmatismo mais rasteiro.
Isso perpassa toda a sociedade, que já está dominada por um espírito mercantilista, consumista, que tomou conta não apenas do país, mas do mundo, com a globalização baseada no mundo financeiro.
A globalização, que trouxe mais informação e ampliou as possibilidades de conhecimento da civilização, exacerbou também os contrastes entre ricos e pobres no mundo inteiro, com maiores conseqüências nos países mais desiguais, como o nosso.
O resultado é que temos um mundo onde as utopias morreram, e um país onde o discurso politico é desmentido pela prática. Está difícil falar em valores, mas nunca foi tão necessário discuti-los.
O historiador José Murilo de Carvalho destaca que a atual irrelevância da política em nosso país se deve à desarticulação da opinião pública.
Para ele, a política deixou de ser “pública”, “vencida pelo corporativismo e pelo particularismo”.
Ele descreve a opinião pública brasileira hoje como uma colcha de retalhos formada por opiniões parciais e setoriais”. A opinião pública nos partidos e no Congresso teria sido “seqüestrada pelos lobbies, pela bancada evangélica, pela bancada ruralista e, fora do Congresso, pelo MST, pela Igreja progressista, pelas ONGs mais atuantes e heterogêneas”.
Em conseqüência, na análise de José Murilo de Carvalho, a opinião pública no país “perdeu sua força de coesão e coação, está dividida, subdividida e desvirtuada em dezenas de ilhotas separadas entre si. E, como a opinião pública não se impõe, o gato e o rato fazem a festa na casa, e a política se esvazia por falta de irrigação vital. A opinião pública está para a política assim como o sangue para o organismo.
Onde a opinião pública se rarefaz, a política perde sua eficácia e sua razão de ser”.
Já vai longe a discussão sobre a ética da política, sendo clássica a definição do sociólogo Max Weber sobre a “ética da convicção”, dos princípios morais aceitos em cada sociedade, e a “ética da responsabilidade”, que prevalece na atividade política. Para Norberto Bobbio, essa definição de Weber é a versão mitigada da tese de Maquiavel de que os fins justificam os meios.
A ética na política já havia provocado muita confusão no governo Fernando Henrique quando, para justificar as manobras do governo para impedir a convocação de uma CPI sobre a corrupção, que estava sendo articulada justamente pelo PT, o filósofo José Arthur Gianotti defendeu que “o universo da política permite e tolera uma certa imoralidade”.
Foi um Deus nos acuda, e a filósofa petista Marilena Chauí, em artigo em que defendia o governo petista das acusações de corrupção, relembrou a defesa da “imoralidade constitutiva da política” feita pelo filósofo amigo do presidente Fernando Henrique. Gianotti, de fato, defendia a tese de que não há uma relação direta entre moralidade e política.
“Quando se pede que um político seja moral, não é um pedido moral, mas político.
É uma arma política acusar alguém de imoral.” Também ficou famoso o debate sobre a necessidade ou não de “sujar as mãos” ao fazer política, tese defendida pelo filósofo francês Jean Paul Sartre em sua peça “As mãos sujas”. Alguns intelectuais defenderam o governo Lula quando estourou o escândalo do mensalão alegando, como o ator Paulo Betti, que “não dá para fazer política sem meter a mão na merda”.
Bobbio, no entanto, chama a atenção, na sua “Teoria geral da política”, que nenhuma das teses que existem para justificar a disparidade entre a ética da sociedade e da política “considera que o objetivo da ação política seja o poder pelo poder”.
Para o próprio Maquiavel, a ação política “imoral”, no sentido de que não corresponde à moral da sociedade, só se justifica se tem por fim “as grandes coisas” ou a “saúde da pátria”.
Mas a corrupção, que está no centro de toda disputa sobre moral na política, não encontra respaldo em teorias, adverte Bobbio: “O que torna moralmente ilícita toda forma de corrupção política é a presunção de que o homem político que se deixa corromper coloca o interesse individual à frente do interesse coletivo, o bem próprio à frente do bem comum, a saúde da própria pessoa e da própria família à frente da saúde da pátria. E, assim fazendo, faltou ao dever de quem se dedica ao exercício da atividade política”.
Contra o pessimismo, e pela necessidade de participação, a definição de Platão, que imaginava a comunidade regida por filósofos, é boa: “Uma das punições para quem se recusa a participar da política é que acaba sendo governado por seus inferiores”.
Entrevista:O Estado inteligente
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