O 3oCongresso Nacional do PT, realizado sob o impacto da decisão do Supremo Tribunal Federal de colocar no banco dos réus praticamente toda a cúpula do partido no primeiro governo Lula, expõe de maneira clara as dubiedades e divergências que vêm pautando a relação do governo com o partido, cada qual tentando se impor ao outro, e ao mesmo tempo cada um tentando desligar-se dos ônus políticos mas querendo se associar aos bônus. Desde a eclosão da crise do mensalão é inegável que o presidente Lula, graças ao sucesso da estratégia de dizer-se traído e enganado, tem tido mais ônus com o PT, tendo mais bônus para distribuir entre seus aliados devido ao sucesso da política econômica e dos programas sociais, exemplos do que une e desune governo e PT.
O discurso de Lula ontem no congresso, depois que se recusou a participar de sua abertura, é a versão politicamente correta para a platéia petista, é o pedágio que Lula tem que pagar para conseguir manter o controle do partido e não jogar fora definitivamente uma marca que ainda pode ter certa serventia política.Mas as contradições permanecem acesas.
As políticas assistencialistas dão votos e mantêm o partido na vanguarda da ação social, mas só são possíveis devido à inflação sob controle e à política macroeconômica, continuação do governo tucano, o que incomoda o PT.
Tese do ex-Campo Majoritário aprovada nas reuniões preliminares do congresso volta a defender “a superação do neoliberalismo no plano das idéias, mas, sobretudo, por meio de alternativas concretas” como de fundamental importância para “clarificar nosso horizonte pós-capitalista, hoje obscurecido pelos impasses do pensamento e das práticas do socialismo”.
O desafio que temos pela frente neste novo século, diz a tese vitoriosa, é reconstruir “uma alternativa socialista libertária.
Para tanto, temos de retomar a crítica ao capitalismo”.
Seria uma tentativa de retomada de uma linha de ação política que está na origem do PT, mas que, segundo estudo de Alberto Aggio, professor livre-docente da Unesp/Franca, publicado no site “Gramsci e o Brasil”, a partir da chegada do PT ao poder federal provocou “uma sensação estranha de ambigüidade entre a imagem difusamente anticapitalista dos primeiros tempos e uma outra, de corte mais pragmático, em conformidade com as fatias de poder conquistadas”.
O professor Aggio considera “pouco precisa” a caracterização do PT como partido socialista, e “pouco convincente” a afirmação de que o PT teria esposado, desde suas origens, uma linha clara de “socialismo democrático”. Segundo ele, “em toda a trajetória do PT é ilustrativo o constante deslocamento discursivo operado em relação ao que os próprios petistas entendiam como distintivo no PT”.
Ele cita: do “partido de trabalhadores sem patrões” passouse a se enfatizar o “jeito petista de governar”; do “trabalhador vota em trabalhador” ou do “vote no três que o resto é burguês” passou-se ao “PT, o partido da cidadania”; e, na mesma direção, expressando sua definitiva integração ao sistema político, a linha política do partido se deslocou da “revolução socialista” para a estratégia da “revolução democrática”.
Outra posição partidária do PT que será defendida no Congresso, o lançamento de uma candidatura própria, também desagrada a Lula, que sente que o partido já não tem força política para se impor à coalizão. O professor Alberto Aggio também localiza essa dificuldade do PT de fazer alianças nas origens do partido: “Quanto à questão da democracia, as ambigüidades (ou até hostilidades) do PT em relação à temática da transição e aos atores políticos que lutaram contra o regime autoritário foram permanentes, e este é um dos fatores que explicam a dificuldade do PT em realizar alianças políticas e eleitorais em toda a sua trajetória. Quando decidiu por fazê-las, foi simultaneamente errático e hegemonista, terminando por concertar-se com atores inexpressivos ou estranhos à luta democrática contra a ditadura, como, por exemplo, o Partido Liberal.” Não foi à toa que o PSB, parceiro histórico do PT, já lançou a candidatura de Ciro Gomes, em aliança com o PDT e o PCdoB. E também não foi por acaso que aconteceu o mensalão, cuja existência agora foi chancelada pela decisão do Supremo. O deputado Chico Alencar, que deixou o PT para fundar o PSOL, afirma que a decisão do STF só fortalece sua convicção de que “se nos faltassem razões políticas, sociais, ideológicas e éticas para termos deixado o PT, agora teríamos a chancela jurídica da Alta Corte”.
Alencar afirma que está demonstrado que “não foram, como se repetiu à exaustão, simples ‘desvios de um grupo’ ou ‘informalidades de campanha’. Foi montagem, à revelia da militância, pelo Campo Majoritário (que continua mandando), de um esquema de poder fundado nos mesmos métodos que o próprio PT sempre criticara”.
Ele diz que o PT atual “se mantém grande nesse acelerado processo de PMDBização: partido com força eleitoral (fundada em poderosas máquinas) e fraqueza programática”.
Para Chico Alencar, “o PT perdeu a mística militante, o ideal socialista, a imantação que a legenda produziu na juventude e nos setores populares mais conscientes e organizados. O lulismo venceu e, como tal, não durará muito. Pior para o país”.
Os encontros e desencontros do presidente Lula com seu partido no 3oCongresso parecem confirmar a análise de Aggio: “O governo Lula parece pedir ao PT e ao petismo que continuem a se metamorfosear, na sua dupla tarefa de ‘reinventar’ o Brasil e a si mesmos”. Os elogios autistas proferidos por Lula ontem fazem parte dessa barganha política, dessa dubiedade que marca a ação do governo na tentativa de se livrar do ônus do petismo sem abrir mão do bônus de uma história que ficou no passado.
Entrevista:O Estado inteligente
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