Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, setembro 18, 2007

Merval Pereira - Algo se move




O Globo
18/9/2007

O senador petista Eduardo Suplicy, se já não tinha, teve a prova cabal no domingo, na Bienal do Livro, de que a atuação do governo e de seu partido para a absolvição de Renan Calheiros provocou a indignação da sociedade civil. Ele arrancou palmas da platéia que lotava o "Botequim Filosófico" quando se comprometeu a atuar para que o próximo processo contra o presidente do Senado tenha votação aberta no plenário, ou quando, por vias transversas, criticou o presidente Lula. Abordando a questão dos valores no mundo moderno, um dos subtemas do debate, o senador petista lembrou que um governante que se cerca de auxiliares de conduta reta, respeitosos dos valores morais, cria um ambiente que naturalmente rejeita os que não se enquadram nesse comportamento.

Se a amostragem dos freqüentadores da Bienal for representativa do estado de espírito da sociedade que forma a opinião pública, no sentido que lhe dá o historiador José Murilo de Carvalho, então os políticos brasileiros estão mal parados, e devendo uma satisfação depois que absolveram Renan. Nos diversos debates que aconteceram no domingo, a participação política da sociedade civil foi o tema central, e o que se viu foi um público sedento de informação e pronto para se mobilizar. Segundo Murilo de Carvalho, é essa classe média - constituída por leitores de jornais e revistas, os internautas, os cidadãos organizados - que forma a opinião pública, enquanto a opinião popular "vive no mundo da necessidade" e votará "muito racionalmente" em quem julga capaz de ajudá-la.

Para ele, a consolidação de nossa democracia só virá "quando a opinião pública se transformar em opinião nacional, com capacidade de opinar e liberdade de escolher". Pois era essa "opinião pública" que estava reunida no debate sobre ética e valores no "Botequim Filosófico" do qual participei, juntamente com o antropólogo Gilberto Velho e o senador Eduardo Suplicy.

Gilberto Velho levou para o debate a banalização da violência, como conseqüência da perda de credibilidade do poder público em todos os níveis, da desmoralização dos valores da sociedade brasileira, uma visão mais ampla para a análise da situação em que nos encontramos, de desmobilização da sociedade, da falta de uma reação organizada. O antropólogo mostrou-se espantado com a naturalidade com que tragédias diárias são mostradas nos meios de comunicação sem que haja uma reação vigorosa da sociedade para cobrar dos governos soluções.

Eu me utilizei dos comentários do escritor Gilberto de Mello Kujawski - em relação à tese do sociólogo Chico Oliveira sobre a irrelevância da política nos dias atuais- que, na coluna de domingo, por equívoco, atribuí a José Murilo de Carvalho, para falar do que considero talvez o maior mal que o governo Lula está provocando no país: a esterilização da política pelo "seqüestro" dos principais agentes mobilizadores que, na análise de Kujawski, foram vencidos pelo "corporativismo e pelo particularismo".

A partir do controle dos partidos políticos através de benesses do poder, da distribuição de cargos e de métodos mais radicais como o mensalão, o governo Lula neutralizou a ação política congressual, ao mesmo tempo em que tratou de controlar os chamados "movimentos sociais" com verbas generosas e espaços de atuação política quase sempre neutros, a chamada "oposição a favor".

Houve um consenso de que apenas com investimentos em educação se conseguirá fazer com que a "opinião popular" se torne "opinião pública", com mais capacidade crítica diante dos governos. O que seria o sucesso do programa Bolsa Família, que já atinge 11 milhões de famílias, foi ressaltado pelo senador Suplicy, que se utilizou dos números do Pnad para falar em melhoria da distribuição de renda.

Falei da minha preocupação com o fato de que o avanço da renda e sua melhor distribuição, que devem ser louvados, não representem uma melhoria estrutural, dependendo da manutenção do assistencialismo governamental. Ressaltei o lado eleitoreiro do programa Bolsa Família, que não tem as condicionalidades, especialmente a freqüência escolar, devidamente monitoradas.

O maior exemplo seria o fato de que o governo comemora a ampliação dos beneficiados, e só faz aumentar o espectro do público atingido por ele, quando o sucesso de um programa realmente inclusivo deveria ser a redução de seus participantes, à medida que fossem ganhando condições de trabalho e maior participação social, independentemente do auxílio do governo.

Suplicy aproveitou para defender seu programa de renda mínima universalizada que, por ser distribuída a todos os cidadãos indistintamente, seja rico ou pobre, necessitado ou abastado, perde o caráter assistencial e cumpre uma função social de fazer com que todos os cidadãos participem da riqueza nacional.

Essa utopia que domina a atuação política de Suplicy há anos já está em prática no estado americano do Alasca, e, de maneira menos ampla, na Inglaterra de uns anos para cá, não para todos os cidadãos, mas para os que nascerem a partir da aprovação da lei. Suplicy ainda encontrou espaço para cantar um rap de Mano Brown, dos Racionais MC"s.

O público, que tem uma participação ativa nos debates do "Botequim Filosófico", mostrava-se indignado, mas sem um rumo, e nenhum de nós tinha uma saída mágica para o impasse em que a sociedade civil se encontra. A não ser a feliz constatação de que aquele tipo de encontro, num domingo à tarde, quase noite, com gente até em pé, era um sinal de que o imobilismo poderia estar chegando ao fim.

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